terça-feira, 31 de outubro de 2017

O filme da minha vida

Segundo o dito popular, ‘quem conta um conto, aumenta um ponto’. Na verdade quem conta uma história, dá sua própria versão aos fatos. Uma versão inevitavelmente parcial, restrita e sujeita à memória, que pode incluir ou excluir detalhes – os tais ‘pontos’ referidos no ditado.

É assim que acompanhamos a história narrada pelo protagonista Tony Terranova (Johnny Massaro), desde a infância até a juventude. Tony relembra a própria vida na tentativa de entender um pouco de sua relação com o pai.

O francês Nicolas (Vincent Cassel) fora o herói de Tony, o pai exemplar, aquele que marcou a infância do personagem, ensinou a andar de bicicleta, transmitiu o gosto por motocicletas e ensinou a língua francesa, que posteriormente garantiria o emprego do protagonista como professor. Tudo perfeito, até que Nicolas voltou subitamente para a França e nunca mais deu notícias.

Se por um lado abandonar a família sem dar satisfações é uma atitude covarde e reprovável, as obsessões que vinculam uma pessoa à vida de outra também são questionáveis. Não que Tony deveria seguir sua vida como se nada tivesse acontecido, o problema é que condicionar a própria felicidade à presença de outra pessoa exige ignorar uma série de relações complexas – por isso a versão que Tony dá à própria história é parcial e restrita.

Selton Mello tem influência dupla na história. Além de diretor, que opta por como a história será exibida, também vive o personagem Paco. Amigo de Nicolas e sempre próximo a sua família, Paco aconselha Tony a seguir em frente e não contar com o retorno do pai, pois se houvesse alguma preocupação por parte do francês, ele mandaria ao menos uma carta.

Até então a não há dúvidas quando ao conselho de Paco. O único indício de parcialidade viria pelo interesse do personagem na mãe de Tony, porém nada mais racional do que estimular o envolvimento do protagonista com Luna (Bruna Linzmeyer) para que a vida seguisse o curso esperado. Formar a própria família provavelmente faria com que Tony superasse a ausência paterna.

O que Tony não tem como saber, por falta de indícios, e não tem como suspeitar, por falta de experiência, é que as respostas para suas dúvidas podem estar muito mais próximas. Não precisa cruzar o Atlântico até a França. Talvez seja suficiente pegar um ônibus até a fronteira.

É uma metáfora interessante. Talvez a fronteira seja mais que o limite entre dois países. Tony pode ter que cruzar a fronteira do ‘eu’ para perceber que cada indivíduo tece diversas relações ao longo da vida. Por mais condenável que seja a atitude de Nicolas, é inegável que muitas vezes as atitudes individuais geram conflitos de interesses difíceis, por vezes impossíveis, de conciliar.

De fato, como o título indica, trata-se do filme da vida do protagonista, entretanto a questão principal seria abordada de forma distinta se fosse narrada por qualquer outro personagem, envolvido na trama e influenciando diretamente na vida de Tony.

É curioso que o protagonista do filme é antagonista de uma história complexa, por envolver uma série de personagens, cada um com seus próprios interesses, com seus conflitos interiores e exteriores, com sua vida que esbarra em outras pessoas de forma inusitada e geralmente desagradável.

Ainda que o filme seja da vida de Tony, muito do que é apresentado se estende para muitas outras vidas, daqueles que assistem ao filme. Um exemplo é a maturidade que seria esperada de Nicolas. O personagem está em uma fase da vida em que não é tolerável escolher um caminho desconsiderando os impactos que serão causados por essa escolha.

Mesmo que atitudes irresponsáveis sejam tomadas, afinal todos tomam atitudes irresponsáveis ao longo da vida, as consequências devem ser tratadas de forma responsável. Fugir ou distorcer os fatos, que por si já são bastante complexos, não traz resultados muito promissores.

Por fim, o que fica claro no filme é que por mais que o caráter individual da vida pese em nossas decisões, o mundo não gira ao redor de indivíduos. É difícil ver uma pessoa em quem depositávamos tantas esperanças nos decepcionar, mas invertendo as peças, é frustrante saber que eventualmente alguém deposite em nós esperanças que não temos a menor pretensão de corresponder. A equação de interesses nem sempre é equilibrável.


terça-feira, 24 de outubro de 2017

La Playa D.C

O protagonista Tomás (Luis Carlos Guevara) é um jovem negro, que vive em uma favela de Bogotá. Poderia ser do Rio, de São Paulo ou de qualquer outra grande cidade da América Latina. É um ícone que relega o discurso da meritocracia à teoria. Na prática as condições de vida são bem mais restritivas do que o esforço individual tem capacidade de mudar.

A opção, geralmente considerada como de uma vida digna, é trabalhada pelo diretor Juan Andrés Arango Garcia. O jovem protagonista prefere recusar o trabalho de vigia. Não se trata de uma rebeldia ou atitude deliberada de fugir do mercado de trabalho formal. Tomás simplesmente se recusa a ser mais um puxa-saco, igual ao padrasto.

Com uma relação familiar sempre tensa, Tomás é testemunha constante das agressões sofridas por sua mãe, o que faz com que a repulsa pelo padrasto cresça a cada dia. Se um emprego formal que garanta um salário baixo, insuficiente para as necessidades mais básicas, já não é muito atraente, tendo como exemplo uma pessoa que o adolescente repudia torna tudo ainda mais difícil.

Um problema inevitável ao retratar a vida nas favelas de grandes cidades é o envolvimento com drogas. Tomás não se envolve diretamente com o consumo ou tráfico, mas seu irmão mais novo, Jairo (Andrés Murillo), precisa fugir dos traficantes. O menino pegou drogas para vender em consignação e consumiu tudo sem pagar. No tráfico não há negociação. Essa atitude é punida com a morte.

Com menos de vinte anos Tomás já parece carregar o mundo nos ombros. Saiu de casa devido às divergências com o padrasto, procura pelo irmão desaparecido para tentar ajuda-lo e precisa encontrar alguma forma de se sustentar. Se o esforço pessoal fosse de alguma serventia, o jovem teria que ser generosamente recompensado.

O caminho que acabou seguindo, menos por opção e mais pela conjuntura, foi apresentado por Chaco (Jamés Solís), um amigo que pensava em sair do país. Na situação em que estava, parecia que nada poderia piorar. A Colômbia – ou como já mencionado, outros países vizinhos – não oferece nenhum atrativo para jovens negros da periferia.

Na tentativa de conseguir dinheiro, Tomás começa a trabalhar cortando cabelo, também por indicação de Chaco. Não é um grande emprego e provavelmente rende menos do que o trabalho recusado como vigia, porém a diferença fundamental é que agora o protagonista se sente muito mais integrado ao trabalho que realiza.

Não é um salão de beleza onde ele mal conhece o proprietário, mas um local especializado nos cortes artísticos, presentes nas cabeças dos jovens, que ostentam cortes desenhados com esmero como uma identidade social. Ali, mesmo que a remuneração seja baixa, existe a identificação com o local e com os clientes.

Os cortes de cabelo que fogem do padrão acabam marginalizados, entretanto é uma afirmação pessoal. Assim como a recusa de Tomás de trabalhar como vigia, os jovens também se recusam em adotar um visual padronizado e imposto pela sociedade, que seguirá marginalizando os moradores das periferias.

A segregação fica evidente em uma tentativa de visita a um shopping. De errado os personagens não fizeram nada além de tentar visitar um local que não é destinado a eles. Tiveram que acatar ao pedido feito por um jovem negro, igual a eles, que não recusou o trabalho de vigia, a exemplo de Tomás.

Cercando as alternativas do personagem, o diretor mostra como a vida de Tomás é intrinsecamente limitada. Não basta o esforço de ficar livre das drogas ou de arrumar um emprego no qual se sinta confortável. A realidade que cerca os personagens obriga que todos tenham uma força muito grande por uma recompensa quase restrita à sobrevivência.

Tomás, seu irmão, seus amigos, todos nasceram e cresceram em um local onde a violência é internalizada desde a infância. Os meninos brincam de atirar com armas de brinquedo ou mesmo imaginárias, até conseguirem uma arma real. A polícia está presente para matar, os traficantes são os exemplos práticos de conduta violenta. As mulheres, mães, irmãs, namoradas, rezam pelos mortos em uma realidade quase paralela, onde existe céu, paraíso, deus.

Dessa forma os moradores da favela de Bogotá seguem seu destino quase predefinido. As escolhas se restringem ao subemprego, ao tráfico, à exploração. A crítica da classe média insiste em falar na meritocracia, rasa e insuficiente para um problema social tão profundo.


terça-feira, 10 de outubro de 2017

Karen chora no ônibus (Karen llora en un bus)

Uma mulher jovem e bonita, casada há dez anos e que tem como principal atividade cuidar da casa e do marido. Durante séculos a sociedade martela esse mantra como meta de vida feminina. É o caso da protagonista Karen (Angela Carrizosa), que tem como efeito colateral desta vida limitada se sentir feia e velha, tendo aparentemente passado pouco dos trinta anos.

O diretor Gabriel Rojas Vera não dá muitos detalhes sobre a vida de casada de Karen. Não precisa. O roteiro está ao alcance de qualquer um, recheado de exemplos reais de mulheres que se casaram jovens e abriram mão de uma vida profissional, não fizeram muitas amigas, amigos nem pensar, e se dedicaram para o matrimônio.

Um belo dia todo o acúmulo de mágoas vem à tona. Não é que Karen não está mais feliz depois de uma década de casada. Na verdade a felicidade não passou de um breve conto de fadas, substituído por um marido que, mesmo não conhecendo o termo, pratica o chamado “gaslighting”, um abuso psicológico.

Uma característica bastante comum nos relacionamentos como o de Karen é que os esforços para agradar o marido não são reconhecidos, mas retribuídos com críticas e humilhações. Com uma vida reclusa e sem referências que auxiliem a personagem a perceber os abusos, ela acaba se convencendo de que não sabe fazer nada direito, é feia, inútil e passa a se sentir grata ao homem que ainda a quer.

Quando ela finalmente decide pedir o divórcio passa a sentir os efeitos de uma vida dedicada a outra pessoa. Com pouco dinheiro e sem experiência profissional, Karen precisa entrar em um mercado de trabalho predatório, repleto de contradições, como exigir experiência e juventude em níveis incompatíveis com a maioria das pessoas.

É incômodo ver a personagem alugar um cortiço e batalhar para reerguer a vida, enquanto o ex-marido veste o terno e vai para o escritório. Seria compreensível que em uma situação tão adversa Karen voltasse para casa. Seria cômodo, se isso acontecesse, julgar sua atitude e insinuar que ela voltou para a exploração do marido por que quis.

No cortiço a protagonista faz amizade com Patricia (María Angélica Sánchez), um tipo de antítese da vida que Karen sempre teve. Ainda que com o estilo de vida bastante distinto, Patricia também expõe a exploração feminina por parte dos homens.

Com um discurso forte de quem já foi enganada por vários homens e não quer repetir os mesmos erros, Patricia não demora a demonstrar fragilidades e carências presentes em qualquer pessoa.

Consciente dos problemas latentes em relacionamentos com homens casados, agressivos ou parceiros eventuais, o problema de Patricia não está em sofrer uma desilusão. Isso está no caminho de qualquer pessoa. Porém o machismo faz com que seus parceiros possam voltar para a esposa, ameaçá-la e fazer com que sua situação sempre seja mais dolorida.

Karen estranha a vida tão diferente da nova amiga, mas não demora para que a sororidade, a compreensão feminina diante da exploração, tome o lugar do estranhamento e passe a haver uma troca entre as personagens. Uma possível censura dá lugar à união entre mulheres que sabem da importância de uma mão amiga nas horas difíceis, por vezes perigosas.

Karen chora no ônibus. Não é somente no título. A personagem de fato inicia o filme em lágrimas e é bastante simbólico que isso aconteça em um coletivo. Ela já não tem como segurar o choro reprimido ao longo de dez anos. Não importa se está cercada por desconhecidos, até porque já nem tem um quarto particular. No filme colombiano cabe o verso da canção brasileira ‘lágrimas por ninguém, só porque é triste o fim’.

O ônibus simboliza uma viagem. Não se trata de subir em um ponto e descer no outro, mas uma viagem sem volta, que abandona uma vida de submissão e falta de reconhecimento para desembarcar em um futuro tão incerto quanto promissor.

Como qualquer viagem a um lugar desconhecido, esse ônibus metafórico passa por caminhos difíceis, em que a opção pelo embarque é questionada, mas a sensação de chegar a um lugar muito melhor do que aquele que ficou para trás é valorosa. Uma pena que nem todo mundo consegue fazer esse tipo de viagem.


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