terça-feira, 26 de setembro de 2017

Neve Negra (Nieve Negra)

A paisagem inóspita de neve permanente da Patagônia parece ser o retrato das relações familiares dos irmãos Marcos (Leonardo Sbaraglia) e Salvador (Ricardo Darín). Dois desconhecidos, cujo laço de sangue só proporciona uma aproximação forçada e indesejada.

Marcos só quer convencer o irmão a vender as terras da família. Com uma proposta irresistível de uma mineradora e a necessidade de dinheiro para cuidar da saúde da irmã, a venda parece o melhor caminho. Ao menos até conhecermos a história que marca a vida da família.

O diretor Martin Hodara trabalha o suspense da história e joga com as informações para guiar os espectadores a favor ou contra determinado personagem. O conceito de mocinho e bandido está longe de ser suficiente para compreender a trama que ronda aquelas terras distantes.

O ponto central é Juan, uma espécie de protagonista inexistente, pois é o irmão morto ainda criança por um tiro, consensualmente acidental, oculto pela versão oficial de ter sido soterrado por uma avalanche.

Apesar da vida naquelas terras cobertas de neve ser dura, depender da caça e não oferecer conforto é ali que Salvador se sente em casa. Existe o vínculo afetivo, a proximidade com as origens e o hábito de se manter longe da sociedade, alimentando teorias sobre a tragédia familiar acerca de Juan.

É bem comum propriedades familiares gerarem divergências quanto à partilha da herança. Nesse caso ainda tem o forte laço com o passado que pesa na decisão dos envolvidos. Para complicar ainda mais a trama, não é possível dividir as terras e vender somente a parte de Marcos. Para a mineradora, só o terreno completo é negociável.

Com exceção das particularidades trágicas da família do filme, a história é um plano de fundo interessante para pensar os conflitos familiares por conta da partilha de bens. Não há uma fórmula exata para lidar com os conflitos de interesse e é natural que cada uma das partes envolvidas defenda seu ponto de vista.

Os membros da família seguem vidas distintas e o futuro da propriedade pode causar conflitos, como a recusa de Salvador em vender as terras, independente do valor oferecido, e o desejo de Marcos de utilizar o dinheiro para facilitar sua vida na Espanha. Não dá para dizer que um está certo e o outro errado, ao menos do ponto de vista material.

O apego sentimental à propriedade deixada pelos pais pode variar entre os irmãos e o interesse em vender um bem material para que o dinheiro seja utilizado de forma mais prática não indica algo ruim. Não é o apego de Salvador à terra que nos permite afirmar sua maior ligação afetiva com os valores familiares. De uma maneira própria Salvador pode ser mais egoísta que Marcos em sua decisão.

Um ponto que não chega a ser central na trama, mas mesmo com leve indicativo merece destaque é uma mineradora estrangeira reduzindo todas as tensões e questões familiares enraizadas no local à cifra milionária oferecida aos proprietários.

A pretensa lei do livre mercado inclui um fator extra nos conflitos familiares, que acaba reduzindo tudo a uma cifra. A propriedade familiar, que muitas vezes chega a ser defendida como o fator que une a família em torno de um bem comum, acaba se tornando o retrato da divergência.

Não que as empresas que façam a oferta de compra tenham alguma responsabilidade direta pelas divergências familiares, mas a impessoalidade com que a transação comercial é dirigida acaba acirrando conflitos de forma desnecessária e reduzindo os fatores envolvidos no problema a uma quantia em dinheiro.

Para usar o exemplo do filme, caso não houvesse a proposta pelas terras da família, Marcos e Salvador não fariam as pazes para poder seguir a vida independente dos problemas que marcam o passado de cada um. Entretanto também não forçariam um encontro que inevitavelmente resulta em provocações e mágoas afloradas.

O rancor acumulado ao longo dos anos, se confrontado, deve ser de forma consciente e bem estruturada. Bater de frente com as mágoas e resolver tudo da forma mais rápida e prática – colocando os lucros que cada um terá com a venda de uma propriedade, por exemplo – só faz com que as chances de uma reconciliação sejam ainda mais reduzidas, geralmente até impossíveis.


terça-feira, 19 de setembro de 2017

Gatos Velhos (Gatos Viejos)

Gatos velhos têm o estigma de serem teimosos, cheios de manias e ranzinzas. Não chega a ser mentira, mas por outro lado também são fiéis ao que viveram, apegados a casa e aos donos, ainda que o apego às pessoas não seja incondicional, mas expresso de forma peculiar.

Neste longa dos diretores Pedro Peirano e Sebastián Silva os dois gatos não chegam a ser protagonistas. Ilustram uma metáfora para o casal de idosos do apartamento.

Isadora (Bélgica Castro) sente pesados sinais da idade, tem dificuldade para se locomover e a memória já não é nada confiável. Além dos problemas ainda tem que lidar com Rosario (Claudia Celedón), a filha com quem parece não ter nenhuma afinidade.

O filme nos induz a ficar contra Rosario. A reprovação de Isadora ao relacionamento homossexual da filha é um juízo de valor anacrônico, mas o uso de drogas, as constantes falências e, sobretudo a tentativa de vender o apartamento para utilizar o dinheiro em mais um empreendimento pouco promissor não cria nenhuma empatia com a personagem.

Rosario é alérgica aos gatos. Talvez pela semelhança de comportamento inflexível e pela concorrência desleal pela atenção de Isadora. A mãe não faz muita questão de esconder a simpatia pelos felinos e a relação de tolerância com a filha.

É Enrique (Alejandro Sieveking), o padrasto de Rosario, quem protege Isadora. Tenta trazer um pouco de lucidez para as propostas da moça e impedir que a velha senhora assine os papeis da venda do apartamento. A tensão entre ela e o padrasto, claro, é gritante.

Vale lembrar que o filme trata de um período muito curto e específico da vida dos personagens, nos guiando para ter empatia em relação a uns e repulsa a outros. Vemos que Enrique é um pouco mais novo e mais lúcido que Isadora, mas não sabemos mais nada sobre ele. Nada garante que a aparente preocupação com a companheira não seja sustentada pelo interesse em bens materiais, como o apartamento que ele tanto defende.

Já a relação entre mãe e filha, que é sempre cercada de simbologias e tensões, ganha mais destaque no filme. O desgaste que chega até o conflito atual das duas é antigo e seria irresponsável jogar toda a responsabilidade nos comportamentos condenáveis de Rosario.

A falta de lembranças em comum por parte das duas indica uma distância de longa data, que inevitavelmente influenciou tanto na personalidade quanto nos comportamentos da filha. O fato de hoje Isadora estar debilitada e frágil não significa que no passado ela foi uma mãe atenciosa e responsável. Por outro lado, nenhuma negligência passada justificaria um comportamento hostil por parte da filha, justamente quando a mãe mais precisa de cuidados.

Em meio aos conflitos de interesse, pode se que surja uma centelha de reconciliação. As teimosias que cultivamos com tanto cuidado ao longo da vida geralmente passam a ter vida própria e a nos controlar muito mais do que gostaríamos. Mágoas e ressentimentos chegam a se desvincular de sua origem real e a existir de forma autônoma. Ninguém nem lembra os motivos que levaram ao afastamento, mas a distância é mantida quase que por hábito.

Isadora tem todo o direito de defender seu apartamento com unhas e dentes, se recusando a assinar qualquer papel que a faça abrir mão de seu patrimônio. Mas também pode começar a pensar em como poderia resgatar um pouco de afeto em relação à filha. Com a consciência dando sinais de fragilidade é possível que o tempo para tomar alguma atitude seja escasso.

Por parte de Rosario, seus traumas e histórico de vida em que foi privada da atenção materna devem ser considerados. Além dos conflitos familiares ela ainda deve lidar com a homofobia cotidiana, que não é restrita à recusa da mãe em aceitar comportamentos diferentes da heteronormatividade.

Mesmo assim, os traumas vividos não dão a Rosario a liberdade de fazer o que quiser, desconsiderando que sua mãe tem o direito de dispor dos próprios bens. O histórico de empreendimentos mal sucedidos, somado aos conflitos cultivados ao longo da vida de ambas, faz com que Isadora fique naturalmente desconfiada.

Diante de uma situação complexa, que aparenta ser o ápice de uma longa série de conflitos, parece que o melhor caminho é o esforço para que gatos velhos ainda consigam ser maleáveis e dóceis. Truques novos são bem-vindos em qualquer tempo.


terça-feira, 12 de setembro de 2017

Corações Sujos

As batalhas europeias da Segunda Guerra costumam ser estudadas a fundo nas aulas de história. Porém o Japão, que fazia parte dos países do eixo, só costuma ser lembrado por aqui devido ao ataque de Pearl Harbor e às bombas atômicas que encerraram definitivamente a Guerra.

O Brasil começou a abrigar, no início do século 20, uma das maiores colônias japonesas do mundo. Com o início da Guerra esses imigrantes, que já sofriam certo preconceito devido às particularidades culturais, passaram a sofrer forte repressão por parte do Estado e da sociedade.

Os conflitos sociais do pós-guerra gerados no Brasil são amplamente descritos pelo jornalista Fernando Morais, no livro Corações Sujos, e ganharam as telas com o trabalho do diretor Vicente Amorim.

É difícil compreendermos com clareza a devoção dos japoneses à pátria e ao imperador. Até o fim da Guerra o imperador tinha caráter divino e abrir mão desse status foi um dos itens de rendição do imperador Hirohito.

Quando as rádios e jornais brasileiros começaram a divulgar a derrota dos países do Eixo, muitos japoneses simplesmente se recusavam a acreditar que o Japão havia perdido a guerra, um fato até então inédito na história milenar do país. Mesmo as mensagens em japonês que confirmavam a derrota eram encaradas como propagandas falsas dos Estados Unidos.

O problema é que os japoneses que aceitavam o fim da guerra passaram a ser considerados traidores. Eram os chamados ‘corações sujos’, que após terem a casa marcada – semelhante aos judeus na Alemanha – eram condenados à morte.

Não era um simples assassinato. À vítima era oferecida uma alternativa, que as diferenças culturais também dificultam nossa compreensão. Os considerados traidores tinham a possibilidade de cometer suicídio, uma forma de morrer com honra, que normalmente era uma alternativa recusada, levando à execução.

As autoridades brasileiras, responsáveis por impedir os conflitos, não sabiam como resolver o problema. Mais que isso, desde a Segunda Guerra costumavam ser hostis aos japoneses, considerados inimigos quando o Brasil passou a combater o Eixo.

Um episódio marcante, que deu origem à organização de japoneses destinada a combater os corações sujos, foi a abordagem policial na qual um soldado brasileiro usou uma bandeira do Japão para limpar a bota. A bandeira nacional é considerada sagrada pelos japoneses, a ponto de ser oferecida junto com uma adaga aos condenados que optassem pelo suicídio.

Os conflitos começaram a tomar grandes proporções, mas ninguém conseguia convencer os japoneses mais radicais de que a guerra havia, de fato, acabado com a rendição japonesa. A dificuldade de identificar membros da seita responsável pelos assassinatos era um agravante. Milhares de imigrantes chegaram a ser presos, mas muitas vezes não havia provas de ligação com os conflitos.

A organização criminosa foi desmanchada aos poucos, com alguns líderes presos e outros assassinados. Já a discriminação em relação aos imigrantes japoneses foi mais duradoura.

É interessante pensarmos em como a tolerância aos imigrantes varia ao longo do tempo. Hoje é estranho pensarmos em japoneses hostilizados, ou mesmo no medo que havia entre os brasileiros de que o Brasil pudesse, por influência dos imigrantes, passar a ser como o Japão.

Quando crises internacionais fazem o sentimento de nacionalismo voltar a ganhar força, os exemplos históricos nos ajudam a compreender como certos discursos não fazem sentido em longo prazo.

Tanto a fidelidade dos japoneses radicais, dispostos a matar seus conterrâneos por aceitarem a derrota que de fato ocorreu, quanto o preconceito contra os imigrantes fomentado por uma política estatal alinhada aos combates da Guerra se mostraram absurdos com o tempo.

Não faltam exemplos históricos que nos ensinem como o nacionalismo, que nasce com o pretexto de exaltar qualidades de um povo, logo se transforma em ódio a um segmento adotado como inimigo. O resultado não costuma variar muito.

Levado ao extremo o nacionalismo deixa um grande número de mortos, segregações e limitações de pessoas que poderiam ser brilhantes, mas são ofuscadas pelo preconceito que as reduz a um rótulo descabido.

Hoje o Japão é visto como exemplo a ser seguido, graças ao desenvolvimento tecnológico e econômico. As colônias japonesas no Brasil estão mais adaptadas culturalmente e também são respeitadas, porém o duro período vivido pelos imigrantes em meados do século passado deve ser lembrado, sobretudo para que não se repita em relação a outros imigrantes.


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