terça-feira, 25 de abril de 2017

O silêncio do céu (Era el cielo)

O diretor Marco Dutra fez uma escolha interessante ao inserir em seu longa um personagem roteirista. Num filme em que, conforme o título indica, o silêncio prevalece, a construção dos personagens e de suas complexidades ajuda a dar ritmo para o clima tenso e difícil de ser encarado.

Uma das formas de filmar uma história é construindo personagens que quebrem a expectativa, desta forma – sem nenhum spoiler já que está no trailer e a cena abre o filme – a protagonista Diana (Carolina Dieckmann) sofre um estupro. Entre as inúmeras formas que cada vítima vivencia e reage a esse crime, Diana opta pelo silêncio.

Aqui cabe uma ressalva. Independente de como qualquer filme aborde o estupro e mesmo que cada pessoa tenha sua forma de reação, uma violência deve ser denunciada às autoridades. Por mais difícil, constrangedor e doloroso, o próprio filme indica a importância das primeiras horas após o ato, tanto para medidas jurídicas quanto para os exames necessários.

É compreensível que Diana tente seguir a vida como se nada tivesse acontecido. Existem fatores sociais que fazem algumas vítimas de estupro tentar ocultar o caso. A vergonha, o medo, o machismo que historicamente tenta culpar a vítima, o receio quanto à reação das pessoas próximas, etc.

A particularidade é que Mário (Leonardo Sbaraglia), o roteirista e marido de Diana, viu parte da cena. Só não teve tempo de reagir nem atitude de falar abertamente sobre o fato. Aderiu ao silêncio da esposa, porém sem a menor pretensão de seguir a vida como se nada tivesse acontecido.

Diana é a única vítima da história. Essa observação poderia ser desnecessária, mas não podemos esquecer que durante muito tempo o estupro era visto como um crime contra a honra do marido. Claro que Mário não seguirá sua vida normalmente e às pessoas próximas também se abre um leque de sentimentos e reações diante de um estupro, porém nem toda reação é justificável.

Parece existir um pacto silencioso entre o casal, no qual cada um busca indícios para decifrar sentimentos e mesmo uma construção de histórias paralelas, que se aproximam pelos fatos e se afastam pela vivência.

Em outras situações o silêncio pode ser interessante em uma relação. O mistério, a imaginação, as várias formas de expressão que podemos descobrir na ausência das palavras pode tornar o contato diário mais instigante e aumentar a cumplicidade de quem é capaz de trocar longas frases por um olhar. Restringir toda a comunicação à fala é um grande passo rumo à monotonia.

Por outro lado, restringir todas as reações da vida conjugal ao silêncio é um convite às interpretações, que quando seguem o exemplo e se mantêm em silêncio formam uma bola de neve. Algumas palavras seriam esclarecedoras, dialéticas para que ambos compreendessem um pouco mais sobre o que aconteceu e até mesmo sobre os próprios sentimentos.

A proteção oferecida por Mário é extremamente bem-vinda. Da menor injustiça à maior violência, qualquer vítima quer o amparo de alguém disposto a oferecer abrigo. O problema é que a tal honra masculina, que diferente do medo só tem amparo em padrões sociais, também grita no silêncio interno do marido.

Passado o estupro, as violências particulares se expressam de forma silenciosa e simbólica. Várias vezes os cactos cultivados na casa ganham notoriedade. A fragilidade de uma planta inerte contrastada com o poder de dano de seus espinhos sintetiza as tensões entre personagens.

Em aparente tranquilidade, todos no filme estão à beira de um ataque de nervos e prestes a utilizar seus espinhos contra qualquer toque. O silêncio do céu, explorado em vários planos longos e sem nenhuma trilha sonora, é complacente com os personagens silenciosos, mas não oferece alternativas.

Até mesmo o roteirista, habituado a buscar alternativas aos seus personagens e a pesquisar na realidade as características que serão utilizadas na ficção, parece não encontrar nenhuma alternativa racional que dê vazão ao turbilhão de sentimentos silenciados, mas nunca controlados.

Os medos, as angústias, as dúvidas e tantos outros sentimentos são abordados de formas diversas pelo cinema, aqui o diretor opta pelo silêncio, que parece tão simples, tão contido, mas oferece as maiores complexidades. Dependendo do contexto pode ser sedutor e misterioso, mas diante da ação e reação de uma violência acaba sendo acima de tudo perigoso.


terça-feira, 18 de abril de 2017

Cordeiro (Lamb)

Dirigido pelo etíope Yared Zeleke, este longa cumpre a função de mostrar um pouco de seu país de origem ao mundo. Geralmente reduzido à seca e à produção de maratonistas, a Etiópia é mais um país associado à África de forma genérica, com suas particularidades ignoradas e perdidas em meio à generalização.

Alguns detalhes são exibidos no filme através do pequeno protagonista Ephraïm (Rediat Amare), que em um roteiro não muito diferente de algumas histórias brasileiras é obrigado a fugir da seca que matou sua mãe, mudando para a casa da família paterna com sua ovelha Chuni, enquanto seu pai procura emprego em uma cidade pretensamente mais promissora.

Apesar de lembrar a história de ‘Vidas secas’, a ênfase do filme não está no sofrimento da jornada, que aqui é feita em um ônibus precário, porém mais cômodo que a peregrinação dos nordestinos. O que chama a atenção no país africano é o forte laço com as tradições e a ausência da infância como estamos habituados a ver por aqui.

Ephraïm acaba de perder a mãe e parece não ter espaço para viver seu luto. Em pouco tempo passa a morar com parentes que mal conhece, com a ameaça de que sua ovelha será abatida para uma comemoração religiosa e com sua afeição pela culinária censurada pelo tio, pois cozinhar é uma tarefa exclusivamente feminina segundo os costumes locais.

É compreensível que em meio a tantas hostilidades o menino saia do ambiente rural onde mora a família e chegue ao mercado da cidade, um conglomerado de comércio realizado à céu aberto. As outras crianças que poderiam significar um pouco de empatia e pertencimento a um grupo de comportamento semelhante ao seu acabam refletindo a violência e hostilidade de uma sociedade reduzida à luta pela sobrevivência.

Ao longo do filme percebemos não haver atividades lúdicas para os personagens. Os adultos se diferem pela autoridade exercida, mas todos parecem ter como único objetivo encontrar meios de subsistência. Para isso o trabalho começa ainda na infância – pois por mais baixa que seja a remuneração, qualquer migalha pode ajudar – e a religião que impõe tantos valores não é um empecilho para tentar um casamento arranjado para a filha adolescente.

Com tanta hostilidade é compreensível que Ephraïm faça de tudo para voltar ao vilarejo de onde veio. A subsistência de uma vida sem propósito não parece nada atrativa e como se isso já não fosse absurdo, sua única fonte de afeto vem de uma ovelha cuja vida deve ser defendida e seu apreço pela culinária – que o faz lembrar da mãe recém falecida – é menosprezado.

O estilo de vida que é evidenciado através do protagonista se estende aos demais personagens. É perfeitamente compreensível que a diferença entre Ephraïm e as demais crianças do mercado, que formam uma espécie de gangue mirim, seja a tênue ausência de uma referência mais afetiva, que pode vir da mãe ou de ao menos um animal de estimação, e o comportamento rígido e inflexível dos adultos seja a reprodução do que vem sendo passado através de gerações.

Mais do que olhar para cada personagem do filme de forma isolada, cabe pensarmos no que poderia surgir de um ambiente tão hostil e fechado, onde o atendimento médico é restrito aos que têm dinheiro e o estudo é um luxo, ou mesmo um mal a ser combatido pelos pais.

O que emerge de uma sociedade em que, a despeito de viver na modernidade, as crianças seguem coibidas de ter uma infância dificilmente será diferente do que vemos no filme. Ephraïm parece ter o destino dos adultos que o cercam. Deve crescer rápido, chegar à maturidade sem passar pela juventude e provavelmente envelhecerá antes dos trinta.

É inadmissível que os direitos mais básicos, desde a subsistência vinda da água e da comida até a moradia digna e o acesso à educação siga vetado a uma parcela da população. Não há mérito ou ausência de esforço pessoal que justifique a condição exposta no filme e vivida em tantas outras partes do mundo, inclusive aqui, no Brasil, do outro lado da rua do condomínio fechado.

A história de exploração dos povos africanos é antiga, constrangedora e revoltante. Filmes como esse vêm nos lembrar que essa exploração não ficou no passado. Segue fazendo vítimas cotidianas, que mal têm direito a um grito de revolta.


terça-feira, 4 de abril de 2017

Huacho

Com o fim da Segunda Guerra e o desenvolvimento da tecnologia que os novos tempos de paz proporcionaram às grandes potências, a população mundial passou a migrar do campo para as cidades. Em pouco tempo as cidades passaram, pela primeira vez na história, a concentrar a maior parte da população, relegando ao campo poucas famílias que resistem à tecnologia e aos grandes latifúndios.

Este longa do diretor chileno Alejandro Fernández Almendras mostra através de estereótipos reunidos na mesma família as dificuldades da vida no campo em uma sociedade majoritariamente urbana, que está cada vez mais imersa no modo de produção industrial e que não percebe as diferenças entre o ritmo das cidades e a vida no campo.

Distante do mercado financeiro e suas ‘commodities’, Clemira (Clemira Aguayo) segue produzindo queijos artesanais, a despeito da idade avançada, e deve negociar sua mercadoria na beira da estrada, com motoristas que não costumam levar em conta a variação do preço do leite ou a diferença de um produto artesanal. Estamos tão habituados com uma indústria que produz toneladas de queijos, que sequer paramos para pensar em como a manufatura ganha em qualidade, sendo justo um preço mais alto.

Clemira já não tem grandes aspirações econômicas. A velha senhora quer vender seus queijos para ajudar na renda da família. Na geração seguinte à dela está sua filha Alejandra (Alejandra Yañez), cujo contato com as pessoas da cidade é maior por trabalhar diretamente com o turismo.

Tradicionalmente a mão de obra no campo não é tão especializada quanto na sociedade industrial. As atividades são realizadas conforme a necessidade, por quem estiver apto naquele momento. Desta forma Alejandra é faxineira em uma espécie de trabalho híbrido entre campo e cidade. O local onde trabalha recebe turistas dispostos a conhecer um pouco da vida do campo, levando inconscientemente a ideia de exploração do trabalho.

O consumo urbano pode ficar distante da geração de Clemira, mas Alejandra não quer abrir mão de suas vaidades, independente de qual seja sua função ou como será recebida por conta do cuidado com que se arruma para o trabalho. Uma possível tendência de censura ao seu consumo deveria esbarrar no fato de que seu salário pode ser gasto da maneira como ela achar melhor, pois independente de onde more, qualquer pessoa deveria ser remunerada com um valor que possibilite mais do que o consumo de necessidades básicas.

O passo seguinte da transição entre campo e cidade é feito através de Manuel (Manuel Hernández), o filho de Alejandra, que ainda não trabalha, mora com a família na zona rural, mas frequenta a escola na cidade simbolizando o preconceito que ainda existe em relação àqueles que moram no campo.

Longe do romantismo idealizado, a escola costuma ser um ambiente bastante hostil, sobretudo aos que sofrem diversos tipos de violência não coibida pelos profissionais de educação. Como podemos ver no filme, Manuel só quer fazer parte do grupo de crianças de sua idade, mas seu acesso é vetado pela origem distinta. 

Corroborando a ideia de uma pessoa simples e inocente por vir do campo, na verdade a distinção se dá pela violência da exclusão, que pode parecer algo menor e passageiro, porém com potencial devastador para o indivíduo, dependendo de como o tratamento discriminatório será trabalhado ao longo da juventude.

Fechando o ciclo da família o diretor volta à primeira geração através do patriarca Cornelio (Cornelio Villagrán). Seu papel ganha destaque diante da notoriedade da reforma da previdência, debatida de maneira superficial. Apesar de estar em um filme chileno, o personagem pode representar inúmeros trabalhadores rurais brasileiros.

Não bastasse a idade avançada que já deveria garantir a qualquer um a tranquilidade do dever cumprido com a sociedade, Cornelio dedicou a vida ao trabalho pesado do campo e segue oferecendo o corpo cada vez mais fragilizado às tarefas difíceis como a construção de cercas.

A família retratada nas telas proporciona reflexões a respeito das políticas públicas, que buscam um padrão social completamente excludente da realidade rural. Não bastasse a concorrência desigual de latifúndios mecanizados, que produzem muito mais e não empregam quase ninguém, ainda devem enfrentar a legislação voltada ao estilo de vida urbano.

Isso não significa que a vida na cidade seja fácil ou que a injustiça seja responsabilidade direta daqueles que nunca tiveram nenhum contato com a população rural, mas as diferenças expostas no filme deveriam ser consideradas com mais atenção e menos preconceito, sobretudo por quem as conhece somente pelo recorte de um filme.


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