terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O outro lado do paraíso

Uma terra em que o sucesso é garantido e onde os problemas não chegam é um sonho antigo da humanidade. Desde a metáfora bíblica, passando pela promessa de reinos, impérios, reichs e por fim cidades é sedutora a ideia de um local onde haja justiça e prosperidade.

Em um país continental e desigual como o Brasil os ciclos migratórios de um local que passa por dificuldades para uma região próspera fazem parte da história. Uma dessas grandes migrações foi gerada com a construção de Brasília, abordada pelo diretor Andre Ristum.

As notícias que se espalharam na época do início das obras eram da gênese de um paraíso, onde não faltava trabalho e consequentemente ascensão social. A ideia de morar próximo ao presidente, que por sua vez vive no Palácio da Alvorada, atraiu milhares de trabalhadores da construção civil, que acreditavam no sonho de que a riqueza era uma questão de tempo.

Entre esses migrantes estava Antônio (Eduardo Moscovis), religioso, sonhador, que vivia em busca da mítica Levitah. A decisão de mudar com a família para Brasília veio depois de um encontro inesperado com uma serpente e a interpretação da bíblia, que como de costume é muito mais uma criação de narrativa que justifique a vontade do que uma análise da metáfora religiosa, que é bastante abstrata.

Hoje é fácil pensar no desenvolvimento histórico de Brasília e acreditar que Antônio não deveria ter mudado, mas além do futuro no sertão de Minas não ser dos mais promissores, havia uma propaganda institucional de que o futuro estava na nova capital da república.

O primeiro choque de realidade foi perceber que Brasília foi construída por muitos, para servir a poucos. Os migrantes foram alojados precariamente em cidades satélites, que não seria um grande absurdo, não fosse a total falta de infraestrutura e o abismo social existente entre a Capital rica e a periferia miserável.

Olhar para o período retratado no filme é especialmente interessante dado o caráter cíclico dos eventos históricos. Há divergências entre historiadores quanto à motivação do golpe militar no Brasil. A versão de que era necessário combater o movimento comunista convence quem se recusa a uma análise mais profunda e as divergências sociais, sobretudo entre as vertentes elitistas, é muito mais condizente com a realidade.

Assim como a situação política atual, a situação do país no início de 1964 indicava uma verdadeira panela de pressão prestes a explodir. O presidente Jango, longe de ser um ditador prestes a se perpetuar no poder, não tinha força política para apaziguar os interesses divergentes que convivem em permanente hostilidade na história do país e que por vezes entram em ebulição.

Estabelecido o golpe, o desenrolar tem resultado parecido com o que vemos hoje, ainda que obtido por caminhos distintos. De forma muito menos reticente, os militares sufocaram todo o movimento operário que lutava por justiça social em nome de uma suposta ordem que levaria ao progresso.

O filme não chega a abordar o resultado histórico do golpe, se restringindo a mostrar o outro lado do paraíso idealizado por Antônio. Sua Brasília rica e próspera na verdade era uma cidade satélite pobre e precária, com injustiças contra as quais sua luta passou a ser punida por um governo autoritário e ilegítimo.

É claro que um paraíso idealizado nunca se concretiza. A maior serventia é a de estímulo ao trabalho que nos leve o mais próximo possível do que consideramos perfeito. Entretanto, ao longo da história do Brasil vemos uma constante manipulação por parte do Estado, que leva a idealizações forjadas nas quais o trabalho da população não remete à concretização de sua própria noção de paraíso, mas à perpetuação das classes dominantes.

Basta olharmos para os problemas deixados pela ditatura que se impôs na época da história retratada para desconstruirmos a ideia de uma intervenção em prol do país. Não é sequer necessário abordar temas subjetivos como a herança autoritária, basta um olhar sobre a disparada da dívida externa, inflação e para as próprias cidades satélites de Brasília, que seguem com a mesma infraestrutura precária e a mesma marginalização de moradores, para percebermos que o ‘milagre econômico’ que se seguiu ao golpe não passou de falsa propaganda.

O olhar histórico que podemos lançar sobre a narrativa do filme não serve somente para compreendermos o passado, mas também para entender e nos precaver dos problemas atuais. Não é necessário seguirmos os passos de Nando (Davi Galdeano), o filho pequeno de Antônio, e achar que ficar longe da pretensa namoradinha é o pior que poderia acontecer. Já deveríamos ter maturidade para ampliarmos nossos horizontes e visão política para saber que as consequências vão além de questões particulares.


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