terça-feira, 31 de janeiro de 2017

600 milhas

O diretor Gabriel Ripstein aborda um tema muito pertinente em seu longa. Ainda que tenha obtido um resultado abaixo do potencial, a obra acaba ganhando relevância diante dos recentes acontecimentos, com Donald Trump repetindo velhos clichês e prometendo acirrar a política de colonialismo norte-americano.

A narrativa predominante e unilateral é a de que latinos visam os Estados Unidos como uma meta a ser alcançada, sendo que muitos dos que atingem essa meta seriam responsáveis por problemas sociais como violência, tráfico, desemprego, etc. O que o filme mostra é que em tempos de globalização financeira, com mercados interligados e transações comerciais megalomaníacas, os problemas também são generalizados.

O estereótipo mexicano do filme é Arnulfo (Kristyan Ferrer), que ganha a vida cruzando a fronteira para contrabandear armas. Antes que alguém conclua que isso justifica o muro prometido por Trump, cabe ressaltar que isso não seria possível sem a participação de Carson (Harrison Thomas), o norte-americano que compra as armas – inclusive as de uso militar – sem grandes dificuldades e repassa ao mexicano.

O país que durante treze anos criminalizou as bebidas alcoólicas elege agora outras drogas como inimigas da nação, fechando os olhos para os danos causados pelas armas fornecidas ao mundo que geram rios de dinheiro – e de sangue.

As atividades ilegais, realizadas de forma intensa na fronteira com o México, são fiscalizadas de perto pelas autoridades do país, porém são reprimidas em doses homeopáticas, ou seja, quando há conveniência ou necessidade de mostrar serviço à população, que se sente segura ao ver latinos detidos.

No filme essa fiscalização é feita por Hank Harris (Tim Roth), até que um deslize abala as estruturas do contrabando, fazendo com que o agente vire refém de Arnulfo. O mexicano não tem a menor dificuldade para voltar ao seu país de origem com um refém escondido no carro. A revista aos que deixam os Estados Unidos é quase simbólica, extremamente diferente dos que tentam fazer o caminho inverso.

Pode parecer justo impor restrições aos que podem tentar traficar drogas ilegais, mas o impacto social e a violência que será gerada por armas vendidas livremente, sob o argumento infantil de que a autodefesa é um direito do cidadão americano, raramente é analisado.

Problemas sociais não são fenômenos isolados. Há uma cadeia produtiva que entrelaça bens de consumo na qual a produção de drogas e de armas formam uma mistura explosiva. Não há saída imediata para essa relação, pois suas raízes são muito mais profundas do que aquilo que o muro prometido por Trump pode barrar.

Entre os diversos fatores que sustentam as violências características de cada país estão relações econômicas seculares que mantêm países latinos como fornecedores de matéria-prima e mão-de-obra baratas, em troca de produtos industrializados permeados por sonhos de consumo.

Junto com as armas os Estados Unidos vendem a ideia que o sucesso econômico do país ocorre por mérito e competência, sendo os outros países – sobretudo latinos e muçulmanos – somente ameaças a serem combatidas. Os que compram essa ideia acreditam que com esforço um dia alcançarão o mesmo sucesso econômico, desde que não sejam atrapalhados pelas supostas maçãs podres, simbolizadas por Arnulfo.

Quando o personagem volta para o México com o refém a história do filme começa a ficar um pouco repetitiva e os diálogos não chegam a explorar todo o potencial da trama, mas o que fica implícito é que essa relação promiscua não traz vantagens ao México ou aos mexicanos em detrimento dos Estados Unidos.

O tráfico internacional de drogas movimenta cifras exorbitantes e não funciona sem armas, que são produzidas e vendidas, em grande parte, por empresas norte-americanas. O discurso de combate ao tráfico somado à falácia de armar o cidadão para que ele se defenda dos perigos externos sustenta um mercado também milionário, que produz vítimas em ambos os lados da fronteira.

Diante das recém ameaças de muros, deportações e interdições, o filme Gabriel Ripstein traz temas pertinentes para a desconstrução de um discurso cínico, que insiste em colocar os Estados Unidos como vítima das violências vindas do exterior e ocultar os problemas originados pela exploração norte-americana.

Não precisamos sequer chegar no usuário final da droga, muitas vezes contrário à presença de imigrantes mexicanos no país, basta um olhar para as relações institucionais entre os dois países para notar que o problema da violência é bilateral, sendo um muro a simples maquiagem para corroborar preconceitos.


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