terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Califórnia

Em seu primeiro longa de ficção a diretora Marina Person nos leva até meados dos anos 80 para acompanhar a adolescente Estela (Clara Gallo). Permeando os problemas característicos dessa fase da vida temos uma série de referências à cultura pop que florescia na época, além de fatos históricos marcantes. Com tudo isso somado o resultado vai muito além de um filme adolescente e agrada a quem assiste de várias formas.

Não há nada de excepcional na vida de Estela. É uma adolescente que, como tantas outras, enfrenta um turbilhão de dúvidas e angústias quase inevitáveis para a sua idade. O tabu da sexualidade, a descoberta do mundo que começa a aparecer fora da influência dos pais, o sonho que se torna meta de vida – que no seu caso é ir para a Califórnia, encontrar com seu tio Carlos (Caio Blat).

Entre os problemas corriqueiros cabe destaque à ironia de ter que lidar com o pai conservador e reacionário vivido por Paulo Miklos, que na época do filme despontava nos Titãs como ícone de rebeldia e contestação. Os Titãs se juntam a uma trilha sonora que reúne clássicos nacionais e internacionais dos anos 80, para deixar qualquer um que tenha vivido e efervescência cultural da época animado a relembrar histórias pessoais.

Hoje temos acesso tão fácil a determinadas coisas que frequentemente nos esquecemos de como era difícil ouvir uma música recém-lançada, conseguir uma camiseta de banda ou mesmo ter privacidade para falar ao telefone na única linha fixa da casa.

A dificuldade acaba valorizando as conquistas. Aquela camiseta importada que era lavada com todo cuidado, até desbotar e continuar quase como uma segunda pele, virando marca registrada do dono; a fita cassete que ao ser gravada não remetia apenas às músicas, mas também à pessoa que gravou, que muitas vezes torcia para que aquela lista de músicas ajudasse na expressão de sentimentos – era quase um perfil de rede social; saber do lançamento de um filme em Hollywood significava a espera de meses até que chegasse a um cinema nacional.

Nem tudo são flores na referida década. Mesmo que muitas diferenças sejam tecnológicas, a economia precária do país era crucial para que até uma camiseta fosse festejada. Além disso, aos poucos fica claro que tio Carlos precisa voltar ao Brasil por conta de uma doença que começava a se apresentar ao mundo, ainda desconhecida e negligenciada.

Essas referências temporais são fundamentais para que o filme deixe de ser apenas uma história adolescente. A obra também não se restringe ao saudosismo. Com a história retratada em uma época turbulenta, logo após a campanha das diretas já, que marcaram o início de uma nova fase do país, podemos estabelecer um paralelo entre as carências e esperanças da época com a situação que encontramos cerca de trinta anos depois.

A base das alegrias e problemas de uma jovem adolescente segue muito semelhante. Características sociais mudam lentamente e a tecnologia desenvolvida nas últimas décadas apenas deu uma roupagem nova à relação dos jovens com o mundo que os cerca.

Politicamente se na época retratada o país lutava para superar uma fase difícil e consolidar a democracia, acompanhada da abertura comercial e desenvolvimento, hoje colhemos muitos frutos provenientes da geração da personagem. Toda a luta expressa no filme pela correspondência de Estela com Carlos foi decisiva para que o país virasse uma página tão triste de sua história.

Por outro lado aquela foi uma geração marcada pela utopia e pelo otimismo. O fim da ditadura cultivava a esperança de melhorias, que de fato vieram. Os que dizem hoje que o país passa pela pior crise de sua história ‘esquecem’ da inflação galopante e dos assassinatos políticos da década de 80.

Nem mesmo em relação à AIDS podemos negar o progresso da ciência. Ainda que não tenhamos chegado à cura, a prevenção e a expectativa de vida dos que contraem o vírus não se comparam ao que tínhamos na época do filme.

O aspecto que aparenta ter regredido vergonhosamente é a postura política da sociedade em geral. Parece termos saído de uma utopia vanguardista para um conservadorismo que se resigna ao retrocesso. Claro que o roteiro do filme não foi pensado como uma crítica à postura política atual, mas diante dos fatos recentes a comparação é tristemente inevitável.


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...