terça-feira, 23 de agosto de 2016

A hora e a vez de Augusto Matraga

Guimarães Rosa é um dos ícones de nossa história. Não bastasse levar a medicina nos recantos do sertão mineiro, ainda reuniu as histórias que ouvia do povo em livros, transformando pessoas simples em personagens que misturam realidade e ficção, com a linguagem inovadora e os elementos que o transformaram em expoente do modernismo brasileiro.

Uma contribuição posterior está no rico potencial cinematográfico de suas obras e um ótimo exemplo disso é essa adaptação do diretor Vinícius Coimbra. Não se trata de comparar com o livro, afinal são linguagens distintas com objetivos muito diferentes entre si, mas trazer para as telas características peculiares de nosso povo.

Augusto Matraga (João Miguel) tem em si a ambiguidade explorada na construção de alguns personagens de nossa literatura, talvez o mais famoso neste sentido seja Macunaíma, de Mário de Andrade, onde a dualidade é mostrada de forma mais escrachada. Augusto Matraga está longe de ser o herói bonzinho que costumamos ver nos cinemas, tão pouco é um vilão, visto que principalmente da metade da obra em diante, mostra virtudes louváveis.

O protagonista acaba sendo a síntese das contradições sociais de nossa história. Imerso em um universo extremamente machista, Augusto trata a esposa Dionóra (Vanessa Gerbelli) como uma propriedade tão legítima quando as próprias terras, até mesmo na tentativa de defender – terras e esposa – de inimigos que querem tomar posse. Não é surpreendente que Dionóra aproveite a primeira oportunidade para fugir. É possível interpretar que a fuga não é exatamente do marido, mas da objetificação que faz com que a ela não reste nenhuma alternativa para tentar evitar os vícios e brigas do marido.

Se por um lado existe uma pressão social para que o homem seja valente e não hesite antes de puxar a arma para quem quer que seja, por outro a hierarquia econômica sobrepuja a valentia do sertanejo. Augusto Matraga podia ser um fenômeno de valentia e destreza com uma arma na mão, mas isso não fazia com que pudesse combater de igual para igual os coronéis com grande poder econômico.

Foi uma derrota desastrosa para os capangas do coronel Consilva (Chico Anysio), que exerce seu poder econômico colocando em prática a violência extrema e cruel sem precisar mover um dedo, que fez Augusto Matraga se dar conta de que era passível de derrotas.

Entra em cena outro aspecto fundamental que marca a sociedade brasileira, a religião, por vezes exacerbada, que permeia todas as classes sociais. É evidente que o uso prático da fé também é alterado conforme a classe. Não que Augusto Matraga não fosse fiel a Deus antes de se ver a beira da morte, mas é um momento em que sua vida muda radicalmente em todos os sentidos e a espiritualidade aflora como uma forma de reconhecimento de que a vida esteve por um fio e ele se salvou por muito pouco.

O contraponto do lado vilão de Augusto Matraga também ganha mais corpo, afinal os valores altruístas e o trabalho pesado não surgiram do nada; são características que sempre estiveram com ele, mas nunca foram estimuladas. Agora o protagonista exerce novos valores, porém como uma espécie de penitência pela graça alcançada, não por assimilar aquelas atitudes como a melhor forma de viver.

Por fim, o último personagem simbólico e significativo é Joãozinho Bem-Bem (José Wilker). Uma espécie de cangaceiro cujo poder se mantem pelo medo. Não há o poder econômico dos coronéis, pois seus bens materiais são ilegais, mas há o poder de quem parece estar acima da lei.

Joãozinho Bem-Bem joga com o apoio da população fragilizada para não ter seu poder ameaçado. Para conquistar o povo oferece coisas básicas, às quais todos deveriam ter acesso, assim ele consegue uma reputação ambígua. Além de temido é também admirado e muitas vezes adorado pela população, pois se todos respeitarem suas ordens terão recompensas.

É uma relação ruim porque anula liberdades individuais e subjuga a população à arbitrariedade de um cidadão civil, porém o combate a esse tipo de problema nunca é feito em sua base, ou seja, fornecendo aos indivíduos educação e emprego que sejam emancipatórios.

A ideia de alguém que preencha uma lacuna deixada pelo estado é muito anterior à obra de Guimarães Rosa e está longe de ter um fim. Basta trocarmos o sertão por uma favela para notarmos que os personagens mudam, mas a estrutura permanece forte.


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...