terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Love

Assim como a sociedade, o cinema de tempos em tempos supera algumas barreiras e o que antes era impensável acaba se tornado até banal. O primeiro beijo – um simples encostar de lábios – foi um escândalo, a primeira nudez, a primeira insinuação sexual, etc.

O diretor Gaspar Noé costuma explorar a fundo tanto as barreiras sociais quanto as cinematográficas, e aqui não é diferente. Em uma trama que trabalha os conflitos de um relacionamento extremamente liberal, que não isenta o casal de problemas, não poderia faltar cenas de sexo, exploradas ao máximo também pelo marketing, já que não se trata de insinuação, mas de sexo real entre os atores.

A trama entrecortada que mescla presente e passado, utilizada em outras obras do diretor, mostra desde o início que o casamento de Murphy (Karl Glusman) com Omi (Klara Kristin) não chega a ser nem satisfatório, e o bebê do casal parece mais um entrave do que uma família nuclear.

De fato o casamento é apenas um galho secundário da trama principal, seu relacionamento anterior, com Electra (Aomi Muyock), que o personagem revive em suas memórias. A história de um relacionamento que por ser intenso e liberal, tem o sexo com presença constante, havendo, portanto a necessidade de que seja mostrado com a naturalidade que acontece no relacionamento.

Muitas vezes usa-se a fugacidade dos relacionamentos atuais para uma pretensa defesa do comportamento conservador da sociedade, sobretudo anterior à década de 60. Isso fica mais evidente quando, em contraponto à liberdade comportamental francesa, um dos expoentes máximos de maio de 68, temos um protagonista norte-americano. A princípio Murphy parece extremamente livre de amarras morais, até que certos entraves veem à tona.

A quebra de padrões por parte do casal não significa sentimentos menos intensos do que os tradicionais casamentos extremamente longevos. Ambos apenas se recusam a aceitar uma rotina cada vez mais morna que costuma se estabelecer após alguns anos de união, compartilhando aos poucos suas fantasias e sempre que possível colocando-as em prática.

Ao invés de pensar em um relacionamento menos intenso, que por isso abre mão da exclusividade, vemos no filme uma relação sincera ao ponto de não permitir que a monotonia destrua o ímpeto do casal. É possível que eles reprimissem suas fantasias mais ousadas em favor de viverem felizes para sempre, ao estilo conto de fadas, que costuma se transformar em fins de semana arrastados em frente à tevê, até que a rotina de trabalho durante a semana volte a separar o casal. Há quem chame isso de amor.

O filme não entra diretamente em fatos históricos, mas podemos facilmente relacionar seus temas com o desenvolvimento social recente. Os frutos da década de 60 na Europa, sobretudo na França, se espalharam pelo mundo, chegando aos EUA na forma do movimento hippie e no Brasil – que evidentemente não tem nenhuma ligação com o filme, mas cabe lembrar – através da tropicália.

Esses são dois exemplos de movimentos que pregavam (e praticavam) extrema liberdade, contestando diversos níveis de autoridade na luta pela autonomia individual. Não dá para dizer que retrocedemos, mas o fato é que tanto aqui como nos EUA alguns posicionamentos políticos atuais, fortemente ligados à moral, dariam a impressão de luta perdida àqueles militantes do passado.

Murphy é fruto desse mundo contemporâneo, com forte influência da moral tradicional e ao mesmo tempo moldada por uma geração que lutou pela desconstrução desses valores. Ao menos pelo que o filme indica, os franceses teriam essa questão mais bem resolvida, já Murphy acaba seguindo o cômodo caminho da hipocrisia.

Enquanto há a proposta de uma mulher como terceiro elemento na relação é muito fácil, em uma sociedade machista, aceitar a ideia e ser visto como uma pessoa de mente aberta. O difícil é ter que realmente desconstruir um valor moral, que de uma forma mais rasa pode até ser visto como a aceitação de outro homem, mas de uma maneira mais inconsciente, o que Murphy e todos aqueles que ele representa precisam é aceitar que a mulher com quem ele se relaciona pode ter desejos tão impactantes quanto os dele.

As relações inusitadas do filme não visam uma forma correta de interação, afinal o certo ou errado pode ser extremamente variável de acordo com os valores de cada um, cabendo ao casal definir seus limites e regras. O que é colocado com muita competência é a necessidade de uma coerência, para que um falso liberalismo não sirva de égide para o milenar machismo que rege os relacionamentos em favor do homem.

Só para não passar em branco, a prova de que o marketing se serve muito bem das cenas de sexo é o trailer oficial do filme. Poderia ser o trailer de um filme pornô, mas Gaspar Noé é mais que isso. 


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