terça-feira, 9 de junho de 2015

Casa Grande

A relação entre casa grande e senzala, onde o proprietário de terras morava com sua família na sede da fazenda e comandava centenas de escravos, habitantes das senzalas, existiu durante a maior parte da história do Brasil. Formalmente não existe mais. A organização social que formava quase um feudo, mais cruel que os originais europeus, não seria viável após a abolição da escravatura.

Porém o que vemos nas ruas, e agora nas telas com o longa do diretor Fellipe Gamarano Barbosa, é que os elementos dessa estrutura não existem, mas seus símbolos seguem pautando nossa sociedade de forma muito intensa, minando um desenvolvimento social que seria benéfico para todo o país, inclusive para aqueles que exploram, mas sem dúvida principalmente para aqueles que há cinco séculos sofrem com a exploração.

O enredo guarda certa semelhança com o livro “Amar, verbo intransitivo”, escrito por Mário de Andrade em 1927, com uma família de classe média-alta, com muito mais dinheiro que cultura, perpetuando preconceitos e desigualdades. Diferente do livro, que mostra a ascensão da elite paulistana, o filme retrata a alta sociedade carioca, através da família de Hugo (Marcello Novaes).

Como qualquer investidor de risco, quando ganha dinheiro com as oscilações da bolsa sem produzir absolutamente nada, Hugo fala em mérito; quando perde, como de fato ocorre, culpa o governo e as críticas se estendem aos programas sociais. É muito cômodo, para aqueles que vivem de renda, criticar programas supostamente voltados para quem não trabalha, o problema admitir que uma posição favorável na escala social facilita muito a própria vida.

O contraponto social da família de Hugo é apresentado pela parte relativa à senzala, ou seja, os empregados da família. Com a crise econômica que atinge a família, o primeiro a ser sacrificado é o motorista Severino (Gentil Cordeiro), mas para o filho Jean (Thales Cavalcanti), que tinha mais contato com o motorista, os pais alegaram que ele tirou férias.

Jean é o personagem central do filme, que converge as influências da família e dos empregados, de quem acaba sendo bem próximo, de uma forma ou de outra. É em quem os pais depositam suas esperanças – a despeito da filha mais nova, que costuma ser ignorada, como uma nuance que indica o tradicional machismo – e depositam também seus medos.

Após a demissão do motorista resta ao jovem ir de ônibus para a escola, o que é visto como sinônimo de terror para os pais. Chega a ser patético os pais dando instruções sobre onde descer e qual caminho tomar, como se estivessem falando com uma criança. Este medo faz parte da estrutura social. De forma inconsciente, os preconceitos disseminados só podem ser mantidos quando os fatos não desmascaram as ideias.

Tanto entre os empregados quanto no pouco contato que Jean tem fora de seu círculo pessoal, ele vê qualidades muitas vezes inexistentes em seus próprios pais, sempre com uma preocupação desmesurada com sua segurança e intervenção direta em sua futura escolha profissional. Cultivar o medo do desconhecido e fomentar a segregação social é uma maneira de sustentar o já citado discurso contra medidas sociais do governo e contra qualquer forma de reduzir, ainda que de forma tímida e insuficiente, o abismo social de nossa sociedade.

O discurso da família é o mais tradicional possível. Alegam que todos conseguiram crescer profissionalmente com os próprios méritos e não acham justo que pessoas tenha a vida facilitada por cotas. Mais do que rebater diretamente essa ideia rasa, o filme mostra as diferenças sociais, provando que o argumento da família não se sustenta.

Ainda que quando comparado ao ápice do conforto a família esteja passando por uma dificuldade econômica, a situação ainda é muito mais favorável que, por exemplo, a das famílias de seus próprios empregados. Todo o capital social, as referências profissionais e as condições de estudo de Jean o colocam vários degraus acima dos filhos dos empregados. O mesmo raciocínio extrapola os limites do filme e se estende para uma infinidade de exemplos reais, que podemos conferir apenas olhando pela janela.

Os problemas pessoais de Jean, ou mesmo as temporárias dificuldades econômicas de sua família, não devem ser desprezados, mas seria muita discrepância tentar usar os conflitos de um adolescente ou os supostos esforços pessoais de Hugo, que não chegam sequer a serem comprovados, como argumento contra qualquer medida que busca um mínimo de equidade social.

O que vemos no filme é que a casa grande, ou a classe que metaforicamente é representada por ela, segue no comando e continua impedindo, por meios mais sutis que a escravidão institucionalizada, uma imensa massa subjugada de ascender socialmente.


2 comentários:

Felipe Souza disse...

Olha... vi esse filme por indicação de um amigo sociólogo e cinéfilo pensando que ia ver um documentário sobre um craque do Corinthians que virou comentarista esportivo, mas não, o que vi foi um filme inteligentissimo e que trata, como poucos, a tensão de classes existente no Brasil. E a pergunta que fica é a seguinte: "e a senhora? Está arrependida de ter mexido nas minhas coisas?"

Alexandre disse...

"Você conhece o Severino?", "O que mais tem aqui é Severino." Ao melhor estilo João Cabral de Melo Neto, em 'Morte e vida severina'!

Esse outro Casagrande é o que jogou no São Paulo, né...

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