terça-feira, 16 de setembro de 2014

Lilet never happened‏

O cinema de cada país costuma ter seu próprio estilo. A cultura local acaba influenciando fortemente nos temas e roteiros. Isso deixa ainda mais curioso o fato de um filme rodado do outro lado do mundo ter um enredo tão globalizado e familiar para os brasileiros. Este longa, do diretor Jacco Groen, é um ótimo exemplo.

Na periferia de Manila, capital das Filipinas, a protagonista Lilet (Sandy Talag) é uma menina de doze anos. Por vezes se apresenta como Branca de Neve e seu comportamento também alterna entre o rude e agressivo de uma realidade cruel e o sonho da criança frágil, em busca de proteção.

A situação econômica precária da família empurra as crianças para a rua, os pais, imersos em problemas, não apenas negligenciam a educação dos filhos como em casos extremos – como o de Lilet – exploram as crianças. Primeiro com a venda de produtos nos semáforos, depois, quando situação se agrava, recorrem ao mercado sexual, sustentado pelo fetiche de homens insanos o suficiente para manter a prostituição infantil.

Apesar das crianças terem um futuro quase pré-determinado por essas condições, o futuro de meninos e meninas começa a ser separado. Enquanto elas aprendem desde cedo os recursos que seus corpos têm a oferecer, eles permanecem nas ruas e logo percebem que há atividades mais rentáveis do que a venda de quinquilharias. Atividades ilegais, mas como cobrar cidadania de alguém que não tem os mínimos direitos garantidos?

Socialmente a reação diante dos problemas de uma infância destruída também é diferente. O caráter de vítima das meninas raramente é negado, porém a reação não vai muito além de uma indignação distante, sem nada de concreto. Já em relação aos meninos seduzidos pelo crime a indignação ultrapassa completamente a tentativa de compreensão.

A violência contra meninas que se prostituem é um crime inaceitável, porém tem como principal vítima as próprias meninas. É possível fechar os olhos e fingir que nada acontece, ou que são casos distantes. Já a violência sofrida pelos meninos se reflete na própria sociedade, que sentirá os efeitos diretos através dos furtos cometidos.

Diante deste cenário a reação mais comum é a fúria voltada contra os menores, incriminados por não cumprirem um dever, ignorando as condições críticas em que nasceram e cresceram.

No filme esse estereótipo é representado por Nonoy (Timothy Mabalot), que nutre uma paixão adolescente por Lilet. Isso divide o jovem entre a vida nas ruas, estimulada pela jovem, e o abrigo criado por Claire (Johanna ter Steege), visando oferecer o mínimo de cidadania que as crianças precisam.

Por mais bem intencionado que seja o trabalho de pessoas como Claire, o caminho não é nada fácil. Além de lutar contra a simbologia de uma pessoa estrangeira se aproximando das crianças locais, muitas vezes chegando de países responsáveis pela exploração que causa tantas mazelas sociais, é necessário lutar também contra a sedutora liberdade oferecida pelas ruas.

Em uma escola tradicional, estruturada, em que os alunos não precisam lidar em casa com problemas financeiros, já não é fácil convencer os estudantes de que o ensino é necessário e benéfico, sendo que muitos frequentam as aulas diariamente simplesmente por obrigação. Imaginar que a importância do estudo seja encarada como elementar pelas crianças, sobretudo em um local onde fará pouca diferença no futuro, é uma utopia.

Conforme já mencionado, esse é um filme que com poucas alterações poderia ser filmado em vários outros países, aparentemente distintos. O que acaba unindo esses países é a necessidade de manter boa parte da população marginalizada, com uma esperança que nunca será concretizada, mas costuma ser suficiente para manter a paz social, mesmo diante de um abismo econômico.

A solução para os problemas apontados no filme é complexa, pois extrapola o caso individual de Lilet. Não basta convencer uma das crianças a tentar mudar devida, até porque a mudança não tem como ser garantida. Os problemas sociais, que muitas vezes não passam de reflexos bem indiretos de uma estrutura social comprometida, devem ser combatidos em sua base.

Preocupar-se com furtos de menores infratores serve apenas para tirar o foco de verdadeiros problemas, que não são combatidos por serem de responsabilidade de pessoas com grande influência econômica e política. Enquanto houver uma concentração de renda que exija um contingente de mazelas sustentando uma pequena parcela da sociedade, o roteiro deste filme seguirá verídico e universalizado.


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