terça-feira, 10 de junho de 2014

O Passado (Le Passé)

Apesar de o diretor Asghar Farhadi ser iraniano, esta é uma produção francesa. O protagonista Ahmad (Ali Mosaffa) retorna de Teerã a Paris para legalizar o divórcio com Marie (Bérénice Bejo). A consequência dos quatro anos de separação é que Marie queria oficializar o fim do matrimônio para casar-se novamente.

A francesa mantem um relacionamento com outro iraniano, Samir (Tahar Rahim), e o que chama a atenção é que a presença de elementos da cultura iraniana não chega influenciar diretamente na trama. A tensão e o desconforto dos encontros e desencontros do filme são típicos da cultura ocidental, que por si já é machista, porém livre dos extremismos islâmicos que exacerba as diferenças de gênero no Irã.

O que o filme proporciona com muita competência é a reflexão sobre o conflito entre hábitos que vêm se concretizando na sociedade recentemente e valores morais ainda não superados. Até pouco tempo atrás a quantidade de divórcios era muito menor e, ao menos no Brasil, o divórcio só passou a deixar de ser proibido por lei em 1977 – claro, não quer dizer que as separações não acontecessem informalmente.

Nem estado nem igreja devem ter o poder de intervir na vida dos indivíduos a ponto de obrigarem um casal a permanecer juntos. Assim, o direito ao divórcio é uma conquista que hoje nos parece bastante óbvia – no Brasil ou na França, mas não no Irã. Porém a liberdade individual de poder dissolver um casamento não foi acompanhada de uma conciliação equilibrada entre indivíduo e sociedade.

Por mais que por ventura nos identifiquemos com o individualismo contemporâneo, não podemos, e no fundo nem queremos, nos afastar totalmente da vida em sociedade. Assim o divórcio ocorre, mas as relações sociais ainda existem e deve ser rearranjadas.

É com base nessas relações tensas que o filme de Farhadi se desenvolve, afinal, Ahmad não se opõe ao divórcio nem tem pretensão de retomar o relacionamento, porém isso não desfaz a tensão e o desconforto de seu encontro com Samir. Em nenhum momento é colocada a questão da divisão de bens ou algum problema mais direto, mas o estranhamento entre os dois conterrâneos é visível.

Conflitos são inevitáveis e é diante deles que nossa racionalidade deve se sobrepor, dando uma solução viável para o problema. Apesar disso as relações sociais são complexas, assim como os conflitos que surgem diante da necessidade de rearranjar cenários. Ainda que os três adultos em questão tenham atitudes relativamente maduras, eles não são os únicos envolvidos na história.

Marie tem uma filha pequena, mas é o filho de Samir, mais ou menos da mesma idade que a menina, quem mais sofre com a separação e novo relacionamento do pai. Sobretudo depois dos anos 70 as gerações vêm enfrentando grandes mudanças em relação à predecessora. O choque de gerações pode ser bastante comum, porém há certa continuidade dos valores.

Uma grande mudança, como o súbito aumento de divórcios e novos casamentos que ‘herdam’ os filhos de uma relação anterior, implica em uma nova geração sem muitas referências sobre como agir. Por um lado há a liberdade de agir, por outro a dificuldade de não saber balancear as vontades individuais com as obrigações diante das poucas pessoas envolvidas.

Não bastassem as crianças pequenas, Marie ainda tem uma filha adolescente com Ahmad, que não aceita o novo relacionamento da mãe e tem um sério problema com a ex-mulher de Samir, que está em coma. Paira sobre os motivos desse estado de coma uma trama bem interessante, com várias hipóteses plausíveis. É fato que ela está nesse estado por tentar suicídio bebendo detergente, mas o que a levou a tomar essa decisão pode ou não envolver a adolescente.

Por um lado podemos pensar em como as partes envolvidas em um caso complexo devem se relacionar com cuidado, mantendo seus direitos ao mesmo tempo em que levam em consideração o impacto que algumas atitudes terão sobre as pessoas próximas. Por outro lado, para Samir, haveria alguma maneira de permanecer ao lado de alguém capaz de cometer suicídio por ele?

Asghar Farhadi traz influências do cinema iraniano para o filme, mas retrata uma estrutura social muito identificada com a cultura ocidental. Mostra um tipo de relação social cada vez mais comum, mas que ainda é tratada de forma bastante imatura por muita gente. Em muitos pontos ‘O Passado’ pode ser encarado como didático, mas deixa claro que separações e novos relacionamentos são permeados por relações bem complexas.


Um comentário:

1ArtistaInexistente disse...

Olá.
Ao assistir esse filme fiquei com a impressão de que o diretor não expunha os costumes da Europa ou mesmo das Américas e sim a falta deles na Ásia, sem obviamente colocar ordem de valor. O que você acha ? Abraço.

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