terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Feliz Natal (Joyeux Noël)

O filme do diretor Christian Carion traz no título a ironia de boa parte dos votos de ‘Feliz Natal’, ou seja, dificilmente é de fato feliz. Este tem a particularidade de inspirado em fatos reais, mostrar a noite de Natal em uma trincheira da primeira guerra, com alemães, franceses e escoceses duelando até a morte, sem saber muito bem pelo quê.

Marco histórico que dá início ao século XX, a primeira guerra ainda apresenta fortes traços de combates bem menos tecnológicos. Há relatos de soldados indo de bicicleta para o front de batalha e mesmo no filme é possível ver os soldados franceses com as características calças vermelhas, que relutaram tanto em abandonar.

Por outro lado, pensamentos que hoje estão naturalizados em nosso cotidiano, começavam a ganhar força naquela guerra, que contribuiu para definir as grandes potências mundiais e difundir ideais globalizados.

A incapacidade de diálogo para resolver conflitos de forma diplomática se desdobrou em um conflito armado, que passou a ser também lucrativo ao contar com indústrias pesadas para a produção de armamentos. O desenvolvimento tecnológico também passou a contar com saltos repentinos ao receber orçamentos cada vez maiores de governos envolvidos em batalhas.

Alheios a tudo isso, soldados abandonavam suas famílias e às vezes por vontade própria, iludidos por uma propaganda beligerante, marchavam rumo à morte nos campos de batalha, rendendo uma medalha de condecoração póstuma aos familiares.

Neste cenário de crescimento econômico à custa de vidas, chegamos à véspera de Natal, em uma trincheira coberta de neve, com soldados cansados e desiludidos após uma batalha sangrenta cujos mortos sequer haviam sido recolhidos devido ao risco de contra-ataques.

Àqueles que comandam a guerra de salas bem seguras e distantes de qualquer combate, o problema é que os soldados são seres humanos racionais e em meio a tanto terror logo percebem as contradições às quais estão expostos. O Natal é apenas um símbolo que faz explodir o sentimento que todos tinham individualmente.

Até que ponto vale a pena trocar tiros com desconhecidos ao invés de baixar as armas, compartilhar a comida escassa, a pouca bebida e fazer com que toda a disputa se restrinja a uma partida de futebol improvisada na neve? Foi o que os soldados das três nacionalidades em questão fizeram naquele Natal. E depois, haveria como motivar os exércitos para voltar a matar uns aos outros mesmo após a confraternização?

Pode ser que a história termine assim, sobretudo tendo sido inspirada em um acontecimento real, mas o potencial metafórico do filme vai muito além disso. Estamos nos aproximando de mais um Natal e, consequentemente, das contradições que a data implica.

Claro, não estamos em guerra declarada – ao menos no Brasil – e isso pode nos levar ao conforto de pensar que poderia estar pior. De fato poderia, mas esse é o tipo de pensamento que nos afasta do que realmente é melhor, que seria a eliminação permanente de contradições que são abafadas somente no período de festas.

É a época da confraternização, portanto os patrões compram um kit de Natal para os funcionários, desde que encontrem um kit bem baratinho; os funcionários presenteiam as empregadas domésticas com um panetone, desde que encontrem um bem baratinho; os mais dedicados irão ao correio realizar o pedido de alguma carta enviada por uma criança, desde que o pedido não seja nada caro; haverá até amigo secreto na empresa, do qual todos sairão reclamando que deram um presente bom e ganharam alguma porcaria.

Depois passa, o tal espírito natalino morre e voltamos para guerra, digo, ao cotidiano de dar ordens, receber ordens, explorar, ser explorado, ignorar crianças carentes e hostilizar adultos carentes.

Da mesma forma que o filme desconstrói o valor religioso do cessar-fogo natalino, mostrando um soldado que admite estar emocionado com a conciliação mesmo sendo judeu, vale ressaltar que a ideia não é a superação de conflito por conta de obrigações religiosas. Ainda que a moral cristã atue forte sobre boa parte da população, ela é variável, por vezes tendenciosa e questionável.

Ao baixarmos a guarda para a associação inusitada entre uma trincheira da primeira guerra e os dias atuais, vemos que manter a hipocrisia de um cessar-fogo simbólico na última semana do ano para logo depois retomarmos a guerra velada com todos os que estão próximo é baixar a cabeça para quem comanda a guerra à distância, longe dos efeitos do conflito direto.


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Muito além do peso

O título do filme resume muito bem seu conteúdo. A diretora Estela Renner fez sua estreia em longas metragens mergulhando em um grande problema contemporâneo, que aparentemente só tende a crescer.

Enquanto muita gente ainda sofre sem ter o que comer, boa parte da população passa pelo problema inverso, sofre com a má alimentação que desencadeia uma série de problemas de saúde, alguns tão indiretos que muitas vezes sequer são percebidos.

A diretora mostra que o problema vai além da mesa e é influenciado por diversos fatores, desde culturais até a intervenção direta do marketing, que vê nas crianças alvos fáceis, sem muito discernimento sobre qual a melhor opção.

Não bastasse os apelos comerciais de redes de fast food e os avanços tecnológicos na área de entretenimento, que prendem as crianças por horas a fio diante de um jogo de vídeo game, muitos pais alegam a falta de espaço para lazer, considerando o risco dos filhos saírem sozinhos de casa.

O problema econômico influencia de várias formas. Existem as atividades físicas como aulas particulares de algum esporte, porém costumam ser bem caras; o baixo preço dos alimentos de baixa qualidade; a falta de recursos para tratar do problema, uma vez que a obesidade já esteja estabelecida, e mais uma série de fatores que pesam fundo no bolso das famílias.

Não bastasse a influência direta da economia, existe ainda a influência relativa desta. Um dos grandes atrativos da comida industrializada é sua praticidade. As carnes processadas já vêm praticamente prontas para o consumo, o suco em pó que fica pronto ao ser misturado na água, o macarrão que cozinha em três minutos. A economia de tempo é sedutora, sobretudo para quem trabalha o dia todo, estuda e chega em casa exausto. A conta vem com o tempo.

Por parte da indústria, até existe a necessidade química da adição de conservantes e outros produtos para que o alimento não estrague antes de chegar à mesa do consumidor. Por outro lado, como o próprio nome diz, são indústrias, e têm como objetivo vender e lucrar. Muitos alimentos são literalmente construídos para que o sabor final agrade aos consumidores, cabendo ao marketing ressaltar os pontos positivos (ou mesmo criar tais pontos) e omitir ao máximo os problemas.

Não é raro que um adulto caia nas armadilhas do marketing, não apenas em relação à alimentação, mas quantas vezes não percebemos ao chegar em casa que compramos algo inútil, apenas pelo impulso, ou seduzidos por um cartaz de oferta? Basta pensar que o simples fato de anunciar um produto com preço de 19,99 ao invés de 20,00 já tem efeito positivo sobre a venda. O que dizer sobre lanches servidos com embalagens mirabolantes e brinquedos relacionados os filmes que estão fazendo sucesso? Os pais têm o desafio duplo, pois além do apelo comercial, há ainda a pressão social quando as crianças veem os amigos com esses brinquedos.

Muitos exemplos do filme impressionam pela extrema falta de conhecimento. Tanto adultos, acreditando que o pacote de batata frita tem pouco óleo, quanto crianças, que não sabem sequer identificar frutas e vegetais, mostram grande deficiência na formação nutricional. Essa falta de discernimento sobre os alimentos abre espaço para que a indústria se aproveite da boa fé do consumidor.

Quando uma personalidade muito conhecida associa sua imagem a um produto, a tendência é que as pessoas ignorem o fato de haver um contrato firmado entre empresa e personalidade, que recebe (muito) para indicar tal produto. O que acaba realmente influenciando é a falsa ilusão de que se uma pessoa famosa consome, é porque tem qualidade.

Efeito semelhante tem o peso de uma marca conhecida. Grandes indústrias são vistas quase como sinônimo de qualidade e confiança, na contramão do fato de que para chegar ao topo tiveram que suprimir concorrentes, reduzir custos de produção (leia-se usar ingredientes mais baratos e com menos qualidade) e aumentar as vendas a qualquer custo, mesmo que prejudicando seus consumidores.

Atualmente passamos por uma situação no mínimo curiosa. A humanidade produz alimentos suficientes para alimentar toda a população (vamos, por ora, desconsiderar que essa produção não aconteça de forma sustentável). Enquanto nos vangloriamos de nossa racionalidade, uma parte considerável da população passa fome, enquanto outra luta contra a obesidade.

A desinformação das pessoas em relação aos alimentos não se restringe à nutrição. Parece que o déficit cultural alcança níveis mais elevados, deixando o consumidor sempre em uma condição passiva, recebendo propagandas sem o senso crítico mínimo para julgar idoneidade das mesmas.


(esse é o trailer, mas o filme está disponível no Youtube)

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O segredo dos seus olhos (El Secreto de Sus Ojos)

Elija bien, lo único que nos queda son recuerdos. Al menos que sean lindos, ¿no?

Neste filme o diretor Juan José Campanella intercala personagens interagindo no tempo vigente com lembranças de um crime cometido vinte e cinco anos antes, em 1974. Vencedor do Oscar e merecedor de qualquer prêmio que tenha ganhado, ‘O segredo de seus olhos’ tem a sutileza do silêncio, do olhar, da palavra não dita, do sentimento não vivido. Pensando no conjunto, a obra me remeteu a uma história de Edgar Alan Poe com essência contemporânea.

O enredo que guia o filme é um crime. Liliana Coloto (Carla Quevedo) foi estuprada e assassinada. Um caso misterioso e com poucas pistas, sem muitos recursos tecnológicos na década de 70, portanto a ser desvendado através da reflexão – semelhante ao detetive Auguste Dupin, de Poe.

Aqui os investigadores em questão são Benjamín Expósito (Ricardo Darín) e Pablo Sandoval (Guillermo Francella), que em meio a toda tensão da história, utilizam o talento de Darín como ator e o alcoolismo de Sandoval como personagem para garantirem algumas cenas de comédia mais engraçadas que muitos filmes criados com essa finalidade.

Junto ao crime misterioso, há também a idealização feminina. Assim como as mulheres de Poe, aqui também vemos a mulher idealizada, perfeita, angelical e inatingível. Isso se expressa mais claramente na quebra da relação entre Liliana e seu noivo Ricardo Morales (Pablo Rago), que passa a ter na vingança seu único propósito de vida.

Porém um olhar mais atento encontra muitas semelhanças com a vida de Expósito, a partir do momento que ele conhece Irene Menéndez Hastings (Soledad Villamil), sua chefe no departamento. Ainda que por motivos bastante distintos, também é um amor que apesar de correspondido, não é vivido, e por isso é perfeito no sentido de que não conta com desgastes naturais do tempo, para tirá-lo de um nível onírico e trazê-lo para o plano real.

Nem tudo é encarado com o romantismo que pode marcar presença até mesmo na resolução de um crime hediondo. Contextualizando o filme em seu período histórico, existe a tentativa, na Argentina prestes a iniciar a ditadura militar, de conseguir uma confissão sob tortura para supostamente encerrar o caso; existe o machismo que influencia na investigação de um crime contra a mulher; além do revanchismo, que prejudica qualquer investigação.

À parte de burocracias, machismos e corrupções, Expósito e Sandoval seguem a busca através de pistas abstratas, utilizando como base um olhar, uma intuição, uma paixão. Esses elementos que têm pouco valor jurídico carregam muito mistério e podem revelar segredos mais profundos, desde que bem interpretados.

É com essas provas pouco objetivas que Expósito chega a outro ponto que lembra Alan Poe. No conto ‘O demônio da perversidade’ (The imp of the perverse) o escritor desenvolve brilhantemente a ideia de atos cometidos com a consciência do erro e posteriormente a confissão, já que de nada serviria ao narrador guardar para si determinado feito – ainda que a confissão fosse um erro do ponto de vista pessoal.

Com base nisso Expósito trabalha sua intuição de forma tão bem estruturada que leva todos que estão próximos a crer que ele está certo. O trabalho em equipe complementa a investigação com os papéis fundamentais de Irene, uma mulher inteligente que sabe usar a ignorância do machismo a seu favor, induzindo uma confissão que se mostra, ao assassino, menos importante que sua virilidade; e Sandoval, que utiliza seu alcoolismo e os amigos de bar para indicar a força da paixão, sobretudo ao time de futebol, que é incondicional. Em breve cena num estádio Campanella consegue mostrar a magia do futebol como poucos conseguiram.

O curioso é que segundo Sandoval um sujeito pode trocar de tudo, menos de paixão. A metáfora ilustrada pelo futebol se aplica aos dois amores do filme por estes não terem sido vividos. A verdade é que a paixão, sim, termina, porém não até que seja vivida em sua plenitude. Ela tem seu próprio tempo, que quando não é cumprido a deixa latente. Podemos fingir que não existe, empurrar para baixo do tapete, mas acabar mesmo, somente se for vivida, assim a convivência mostra ao poucos os defeitos, as desilusões, as decepções que esfriam o ímpeto inicial.

Apesar de parecer pessimismo, trata-se de um tema antigo na literatura. O debate de como seria a vida de Romeu e Julieta caso tivessem passado a vida juntos leva a discussão ao menos até o tempo de Shakespeare. Aliás, é possível indicar uma relação ainda mais forte de Expósito e Irene com o casal shakespeariano.

Há na Argentina certa clivagem social com base nos sobrenomes. Os de origem europeia têm mais status que outros e isso fica bem evidente quando um desafeto do investigador, ao notar o clima de romance o provoca dizendo que ela é uma Menéndez Hastings e ele é apenas um Expósito. Mais que o sobrenome ela tem o amparo legal de uma família influente no meio jurídico, ele é apenas um sujeito esforçado, talentoso, em um mundo que nem sempre valoriza o esforço e o talento.

Claro, um amor, mesmo que correspondido, pode não acontecer por uma série de fatores. A diferença social é um dos aspectos, mas independente dos motivos que impeçam a paixão, o fato é que ela permanecerá presente. Ricardo, o noivo de Liliana, não tem opção e tem que conviver com o peso de uma paixão interrompida pela morte. Benjamín e Irene seguirão com uma paixão pendente, que dura ou até a morte, ou até ser vivida e cumprir seu próprio tempo.


terça-feira, 19 de novembro de 2013

7 dias em Havana (7 días en la Habana)

A história do cinema cubano está intimamente ligada à revolução do país, em 1959. Uma das primeiras medidas ligadas à cultura foi a criação do ICAIC (Instituto Cubano del Arte y la Industria Cinematográficos) que livrou a ilha dos melodramas até então produzidos e deu início à criação de uma identidade local para os próprios filmes.

Apesar do forte controle estatal, alguns diretores como Alea e Espinosa utilizaram várias vezes seus privilégios, provenientes da amizade pessoal com o alto escalão do governo, para poder retratar a sociedade cubana permeando algumas críticas ao governo, ainda que o apoiassem.

Com a atual crise econômica do país, parte proveniente de décadas sob embargo econômico, parte pela própria dificuldade de girar a economia na contramão do modelo econômico global, o ICAIC não tem condições de patrocinar a grande quantidade de filmes que já foi produzida em décadas passadas. Com isso o país volta a recorrer à ajuda externa, que geralmente ocorre através de parcerias onde o talento para a produção, desenvolvido pouco a pouco no país, é fornecido pelos cubanos e o dinheiro para a produção vem de outros países.

Uma variação deste tipo de parceria é encontrada na produção deste longa. Seis diretores estrangeiros e um cubano produzem sete curtas-metragens, um para cada dia da semana, mostrando algumas características de Havana, sua população, seus costumes e algumas vezes a relação da cidade com estrangeiros, já que o turismo tem peso crescente na economia da ilha.

Apesar do risco de se formar uma visão externa falsa do cotidiano da cidade, exatamente um dos pontos que se queria evitar no início da revolução, além da exposição de ideais contrários aos das mudanças em curso na sociedade, a maioria das histórias mostram a diferença entre cubanos e turistas que permitem críticas ou exaltações, dependendo do olhar que se lance ao filme.

Há em comum certa alienação por parte dos turistas que visitam a ilha, uma visão que beira a inocência, quando comparada ao engajamento dos personagens cubanos. Alguns estrangeiros mostram total falta de comprometimento, encarando a viagem como uma grande festa, repleta de mulheres e bebidas, que geram respectivamente frustrações e problemas.

Entre os cubanos é evidente que, como em qualquer país do mundo, surgem problemas tanto sociais quanto econômicos. O machismo histórico, tão fortemente presente na América Latina, foi combatido ao longo da revolução, porém ainda é fortemente notado, tentando ser contornado no filme com um pouco de romantismo, mas ainda assim com presença marcante.

Outro ponto importante, que pode ser visto como virtude ou problema, é a versatilidade do povo cubano. No lugar da especialização exacerbada, que costuma dominar os profissionais, tomando todo o tempo que o indivíduo tem disponível, notamos que os cubanos exercem suas profissões, mas também são extremamente habilidosos em seus hobbies ou atividades complementares.

Desde o taxista com extrema desenvoltura com o trompete até a psicóloga que vende doces para aumentar a renda, driblando a falta de ingredientes para suas receitas por conta das dificuldades do país, vemos uma sociedade muito mais horizontalizada. Para muitos pode parecer inadmissível que uma psicóloga tenha que cozinhar – uma atividade tão ligada à servidão em nossa cultura –, porém é notável que não haja muitos privilégios de classe e as dificuldades do país são compartilhadas por seus habitantes, não por somente uma parcela deles.

O espírito festivo dos cubanos não poderia ficar de fora, sendo que entre os habitantes da ilha há uma ponderação entre as festas e o trabalho, enquanto os estrangeiros querem apenas a diversão e o hedonismo com fim em si mesmo. Além das comemorações, está presente a religiosidade, seja através da Santeria – uma espécie de candomblé, que une a religião africana ao catolicismo – seja através da devoção à santa católica, na construção de um altar.

Nesses sete dias em Havana temos uma leve noção de como é a vida na cidade. Sem as interferências políticas, vemos que se trata de mais uma cidade, com suas particularidades, diferenças entre estrangeiros e habitantes locais, problemas e virtudes de uma sociedade que, em meio a uma globalização tão feroz mantém um resquício de originalidade, talvez tênue quando vemos jovens dançando algo bem parecido com os detestáveis “pancadões” que temos por aqui, mas indiscutivelmente importantes quando vemos pessoas politizadas e multifacetadas.


terça-feira, 12 de novembro de 2013

Frances Ha

Em meio às megaproduções, com efeitos especiais megalomaníacos e cenas que despertam o famoso comentário “só no cinema”, por vezes aparecem algumas obras que quebram essa tendência e se destacam mesmo sem esses elementos.

Sem efeitos especiais e filmado em preto e branco, Frances Ha, do diretor Noah Baumbach, traz um enredo simples, um recorte da vida da protagonista Frances (Greta Gerwig), que vive em Nova York, com um estilo de vida tão caótico quanto a cidade que a acolhe e bem diferente da vida tranquila que sua família leva em uma pequena cidade do interior.

O filme tem sido muito elogiado e com mérito. É divertido, bem produzido, com boa trilha sonora e em pouco tempo nem percebemos que o preto e branco da fotografia é incomum para o cinema atual. Apesar disso, o filme tem um elemento a mais para algumas pessoas: a identificação.

O roteiro se repete em qualquer metrópole, que a exemplo de Nova York atrai jovens de várias partes do país, atraídos por oportunidades de emprego, estudo, diversidade cultural e a possibilidade de construir a vida de forma distinta das opções de pequenas cidades.

Claro que nem tudo são flores na vida de Frances. Diga-se de passagem, nem tudo são flores na vida de ninguém. Os contatos pessoais em sua vida ficam por conta das amizades, que são fortes, intensas e verdadeiras, mas que geralmente esbarram em conflitos de interesses difíceis de serrem sanados.

Os laços familiares têm influência muito maior em nossas decisões. Podemos recusar oportunidades ou mudar de planos. Quando nos frustramos ao sacrificar desejos em troca de melhor relacionamento familiar, a sensação de obrigação tenta equilibrar a frustração. Entre amigos, por mais forte que seja o elo, diante de um impasse muitas vezes é necessário tomar uma decisão mais individualista, sem que isso seja errado ou condenável. São apenas caminhos paralelos que chegam a uma bifurcação.

Além dos impasses entre amigos, as grandes cidades como oportunidades de emprego costumam criar algumas frustrações. De fato oferecem mais vagas e mais diversidade de carreiras, o que é fundamental para Frances, que é bailarina. Porém a concorrência também é grande e a visão utilitarista que persiste na sociedade faz com que algumas profissões sejam pouco valorizadas.

Independente de como esteja a situação profissional, as contas são implacáveis. O aluguel é caro, o pagamento é inadiável e não importa se o emprego que sustenta o morador simplesmente desaparece. As peças de reposição em um grande centro urbano são numerosas e se alguém não pode pagar, deve simplesmente sair e dar lugar à outra pessoa. Não importa para onde vai ou como vai viver. Injusto, sem dúvida, mas real.

Com tantos percalços, o que segura Frances em Nova York, ao invés de retornar e viver a vida tranquilamente com sua família?

A protagonista é o tipo de pessoa que não caberia em uma pequena cidade. Dribla as dificuldades para poder viver intensamente os problemas e vitórias, faz novas amizades, muda de apartamento, de emprego, só não abandona o estilo despojado que marca sua personalidade.

A excentricidade, comumente criticada, porém com mais ênfase em locais homogêneos, com pouca diversidade, costuma encontrar pares em grandes centros, gerando um sentimento de identificação e conforto. Frances só tem os amigos. Abriu mão do namorado e apesar de procurar alguém, não coloca essa busca como única meta de sua vida, pois como fica evidente, seu tempo está bastante ocupado para se adequar a alguém.

Relações mais distantes, como a amizade, permitem a flexibilidade necessária para que a personagem se mantenha excêntrica, sem que isso atrapalhe sua vida. Pode assim aproveitar o Natal na casa dos pais, viajar a Paris e voltar em dois dias para procurar um emprego, desabafar com pessoas que mal conhece e buscar seus sonhos sem que isso signifique um romantismo vazio.

Se por um lado as raízes de Frances são frágeis, o que não lhe garante estabilidade, por outro a moça encara os problemas com a consciência de que nem tudo é eterno, usando a instabilidade da vida a seu favor. Sabe abrir mão do que gostaria de manter, mas não pode. Respeita o tempo para que sua grande amiga viva uma história particular longe dela, antes de reatar o contato. Procura emprego, amigos, diversão, tudo.

Que o filme é bom, não há dúvidas. O que vale a pena ressaltar é como o filme atinge quem encontra na vida de Frances um pouco de si.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

Saneamento básico, o filme

A princípio este longa do diretor Jorge Furtado é definido como uma comédia, porém o enredo vai além de simplesmente fazer rir – talvez esse nem seja sua principal característica –, guiando os espectadores por caminhos entre a reivindicação de direitos perante o poder público e a metalinguagem da produção de um filme.

Para condensar tudo isso vemos os moradores de uma pequena vila de colonização italiana, chamada Linha Cristal. Eles precisam somente de uma fossa para tratar o esgoto que vem sendo jogado diretamente no rio, mas a prefeitura só dispõe de uma verba cultural, para a realização de um filme. Dez mil reais. Suficiente para a realização da obra.

A solução encontrada para utilizar o dinheiro foi realizar um filme e utilizá-lo como pretexto para o financiamento da fossa. A partir daí vemos que a produção de um vídeo, ainda que simples, tem muito mais detalhes do que imaginamos. Apesar disso, esta mesma produção costuma ser tão envolvente que até mesmo um projeto descompromissado passa a engajar os envolvidos, que passam a ter grande dedicação.

O paradoxo do filme é reunir grandes nomes do cinema brasileiro e coloca-los para atuar como se fosse amadores. Desta forma Marina (Fernanda Torres) começa a desenvolver a história do vídeo com seu marido Joaquim (Wagner Moura). Sem sequer saber muito bem o que é um filme de ficção, os dois começam meio sem rumo, agregando ideias desconexas que lentamente, e com a ajuda de pessoas próximas que pouco a pouco se envolvem na produção, ganham forma e começam a preencher os dez minutos necessários para o vídeo.

Uma das formas de aprender a fazer cinema (incluindo desde longas metragens até pequenos vídeos) é a mais tradicional, ou seja, estudar e partir do conhecimento teórico para realizar a prática. A outra, que pode ser mais eficiente de acordo com a facilidade que cada um tem para aprender, é realmente tentar por uma ideia em prática e solucionar os problemas conforme vão aparecendo.

Com um método de trabalho quase construtivista, os personagens do filme se transformam por sua vez em personagens do vídeo, também buscam patrocínio, sugerem sequências, dirigem e se desdobram para superar todas as dificuldades que quem produz filmes sem muitos recursos conhece bem.

Mesmo com pequenas desavenças que surgem ao longo da produção, em geral o vídeo tem a capacidade de unir os moradores da vila em torno de um objetivo em comum, que aos poucos passou a ser mais as filmagens do que a própria fossa, que deu origem a todo o trabalho.

Bastante realista é o aproveitamento do trabalho por parte do prefeito, fazendo de tudo para colher os frutos que nunca ajudou a plantar. Ainda que pareça absurdo uma prefeitura ter verba para um vídeo enquanto o saneamento básico precisava de obras, de fato o orçamento é dividido em pastas, até para que não fique todo concentrado em uma única área.

O problema – tanto na tela quanto fora dela – é a incapacidade de gerir recursos e aloca-los de forma eficiente de acordo com as demandas da população, sem falar na incapacidade das instituições de desenvolver projetos artísticos em conjunto com a educação.

Assim como no filme, a verba que os municípios destinam para a cultura costuma ser mal aproveitada e nem sempre surge um grande projeto casual como a produção de um vídeo que mobilize a população. Se nos livrarmos da visão utilitarista que estamos habituados a ter diante de novos projetos, veremos que os moradores de Linha Cristal não viraram diretores, roteiristas, atores ou qualquer outra profissão relacionada ao cinema. É possível que até mesmo a fossa pudesse ser construída de outra forma, porém é inegável que aprenderam muito com as filmagens.

Quando a educação é entrelaçada com a cultura, ambas se desenvolvem de maneira muito mais fluente, já que uma dá sentido para a outra, resultando em indivíduos mais completos e críticos por terem melhor visão do todo, ao invés de limitarem-se às partes.

Assim como os personagens do filme foram imersos em um problema, vendo na prática as dificuldades de soluções que parecem simples, qualquer pessoa que passe por processo semelhante, não necessariamente com a produção de um vídeo, irá treinar aspectos de argumentação, criação e percepção, que são indiretamente úteis em quase tudo o que fazemos, e são muito influentes em demandas populares em relação ao poder público.


terça-feira, 22 de outubro de 2013

O Grupo Baader Meinhof (Der Baader Meinhof Komplex)

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem.
Bertolt Brecht

Atualmente a Alemanha destaca-se como o país, economicamente, mais importante da Europa. Como sempre, a economia aquecida proporciona também o poder político na região, porém o caminho até essa condição não foi fácil. Na metade do séc. XX o país estava destruído, física e politicamente, tentando se recuperar e juntar os cacos espalhados pelo território dividido entre ideologias da guerra fria.

Diante de uma vertente imperialista do estado alemão, que consequentemente marginalizava ou apoiava a marginalização de minorias, muitas vezes dizimando as mesmas em conflitos armados, um pequeno grupo radical revoltou-se contra uma série de injustiças institucionalizadas. A opção foi o confronto direto através de atentados.

O grupo ficou conhecido como Baader-Meinhof, pois no começo eram liderados por Andreas Baader (Moritz Bleibtreu) e Ulrike Meinhof (Martina Gedeck). Sua história, pouco conhecida no Brasil, com exceção da intervenção nas Olimpíadas de Munique, marcou a segunda metade do século e influenciou toda a política alemã da época.

A violência das ações do grupo não chegou a resolver problemas ou sanar as reivindicações, pelo contrário. Conforme vemos no filme do diretor Uli Edel, inspirado no livro homônimo de Stefan Aust, vários membros da RAF (como o grupo ficou conhecido) sofreram consequências graves por seus atos.

O ponto central ao tentarmos entender as ações em questão é que nem a RAF nem nenhuma outra organização semelhante pretende utilizar a violência como um fim em si mesmo, mas como um meio para evidenciar problemas. Todo governo adota políticas que geram controvérsias, aqui o apoio (ou complacência) à guerra no Vietnã e a causa Palestina foram os principais alvos.

Quando a grande mídia é confluente com o governo, qualquer voz destoante que tente propor um diálogo ou ao menos questionar certas políticas será suprimida sem espaço ou direito à opinião. A reação violenta do oprimido, ou daquele que o defende, é como um grito de quem pede socorro, pois ainda que seus atos sejam noticiados como vandalismo, suas causas serão postas em evidência, sobretudo se as ações perdurarem.

O mais comum é que os atos de violência física sejam criticados, dado à barbárie intrínseca que possuem. Porém vale ressaltar que nem toda violência é física. A explosão de uma bomba pode ser resposta à violência simbólica, apenas se expressando em outra linguagem, como alguém que sofre uma tentativa de assalto e reage com socos e chutes contra o assaltante.

Se por um lado somos seres racionais, com potencial para abrir mão das agressões e solucionar desavenças mediante negociação, por outro muitas vezes a famigerada democracia se resume a uma fachada que oculta e, sobretudo manipula dados para que os conflitos sejam atenuados, a ponto de passarem despercebidos.

Até mesmo em virtude desta capacidade de negociação muitos rejeitam atos violentos alegando a existência de outros caminhos para protestos. De fato, em teoria esses caminhos existem, mas pensando pelo lado dos manifestantes, são cidadãos comuns que se arriscam, tanto pela própria violência dos atos que cometem quanto pela repressão estatal, que em nome da lei e da ordem chega a mobilizar o aparato militar do estado para neutralizar manifestações.

Os que estão dispostos a correr todos os riscos veem nas ações diretas a única forma de gritar contra as injustiças que vivenciam, e se gritar – metaforicamente – pode dar margem para uma falsa associação com imaturidade, vale lembrar que mesmo os bebês, cujo único recurso é o choro, conseguem o que querem com o grito.

Por fim, uma das funções do estado é a mediação de conflitos. Em último caso é o único a ter monopólio legítimo sobre a violência, o que daria o direito institucional de reprimir manifestações. Porém essas repressões não devem ser ilimitadas. Há, sim, um claro limite entre a autoridade e o abuso de autoridade.

Com a falácia de que em um conflito entre manifestantes e policiais os ânimos estão exaltados e ambos cometem excessos, passa despercebido o fato de que a polícia é exaustivamente treinada para agir em situações de tensão, enquanto por parte dos manifestantes, existe apenas um aglomerado de cidadãos civis, em um movimento horizontalizado, que não conta com ordens ou estratégias.

O grupo retratado no filme, que começou com Baader e Meinhof seguiu por várias gerações, de forma muito menos centrada do que pretendiam seus criadores, mas ainda assim com o mesmo espírito de luta, movido pela indignação perante injustiças sociais.

Não é por acaso que o conteúdo do filme se encaixa com o que o Brasil tem vivido graças aos Black Blocks. Aqui, na Alemanha e em qualquer outro lugar, sempre haverá pessoas que preferem a violência à letargia. Quando suas reivindicações são justas, resta pensar se o combate deve ser com mais violência ou com o bom senso de reivindicações atendidas.


terça-feira, 15 de outubro de 2013

Metallica: Through the Never

No começo dos anos 80 o Metallica era um grupo formado por quatro moleques, dispostos a beber o máximo possível e exteriorizar seus sentimentos através da música. Misturando power chords com influência do punk e do heavy metal, os garotos foram os precursores do thrash, estilo do qual foram se afastando ao longo da carreira.

Desde o início da década de 90, com o lançamento do black album, o Metallica não é mais somente uma banda, mas uma marca. Uma espécie de grife, que não vende apenas música, mas qualquer coisa que leve seu logo.

Inovadores desde sua origem, a nova empreitada é o lançamento do filme em 3D, que leva às telas de cinema um show da banda, recheado com uma história de ficção, que fica em segundo plano e não chega a atrapalhar a apresentação das músicas.

Uma característica da banda é a grande energia que transmitem ao público nos shows. É claro que em estúdio as músicas têm qualidade, mas a execução parece muito mais contida. O único que conseguiu reduzir um pouco essa diferença foi o produtor Bob Rock, depois de muito trabalho no black album.

Como era de se esperar, toda essa energia em uma tela de cinema, com recurso 3D e toda a edição de imagens, resulta em um espetáculo bem atrativo para os fãs da banda, que têm o desafio de se conter na cadeira do cinema aos sons dos clássicos que consolidaram a banda como uma das mais influentes do rock.

O trabalho do diretor Nimrod Antal não deve ter sido fácil. Com o objetivo de filmar uma história paralela para não lançar somente um show em 3D, Antal corria o risco de interferir muito no show, que independente de qual seja a expectativa de quem for ao cinema, vira prioridade logo na primeira música.

A ficção mostra o roadie Trip (Dane DeHaan) maravilhado no backstage do show, como qualquer fã ficaria se estivesse nessa situação, porém no fim da primeira música recebe a ordem de buscar uma encomenda na cidade e voltar antes do final da apresentação.

A partir disso a história começa a se desenvolver de forma linear, depois foge completamente da realidade, ficando mais interessante e prendendo a atenção, mesmo em meio às apresentações fantásticas das músicas. Logo dá para perceber que a jornada de Trip está encadeada com as músicas do show, portando tudo vai ganhar mais sentido se você conhecer pelo menos o tema da letra da música.

Dentro da história, que é curta por ter elementos somente entre as músicas do show, há um grande mistério (sem entrar em detalhes aqui, para não estragar a surpresa de quem ainda não viu) que torna ainda mais importante saber sobre o que a música em questão está falando. Ainda que não exista uma resposta exata para o tal mistério, o filme dá uma sugestão.

Em relação ao Metallica, as expectativas são correspondidas. Ótimos músicos que são, contam com a edição de imagens e as tomadas captadas em mais de uma apresentação que, associadas ao efeito 3D, oferecem uma ótima perspectiva de visão, que em nenhum ponto da plateia é possível conseguir.

Filmado no Canadá, em shows realizados especificamente para fornecer material ao filme, só o palco já é uma atração à parte. Tecnologia de ponta, trazendo uma coletânea de marcas importantes ao longo da história da banda, como a estátua da justiça se despedaçando, as cruzes de Master of Puppets (com direito a uma bandeira do Brasil de relance na plateia) e o acidente encenado durante Enter Sandman.

O filme cumpre bem seu papel. Oferece mais que um show e explora bem os recursos cinematográficos. O curioso é que o retorno não tem sido tão bom quanto o esperado e sem dúvida isso pode inibir bandas que tenham gostado da ideia. Difícil dizer qual o fator determinante para o filme não ir tão bem nas bilheterias, talvez a postura contida de uma cadeira de cinema que nunca vai substituir um show de verdade.

De qualquer forma, produzir um filme 3D foi caro e trabalhoso. Mesmo com a qualidade final e com a inovação da banda, é bem provável que sua produção fique apenas registrada como curiosidade na história da música.


(diferente do trailer, no filme as letras das músicas não são legendadas!)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Capitães da Areia

Nunca pensei que um dia eu colocaria uma obra de Jorge Amado entre minhas favoritas. Meu gosto pela leitura começou tarde, já no final do ensino médio. Havia lido “Mar Morto” por imposição escolar e não me despertara grandes sentimentos; acho que eu não estava maduro para ele.

Depois, vi em algum lugar uma defesa à obra de Paulo Coelho dizendo que em sua época Jorge Amado também era alvo de críticas. A péssima fonte me rendeu uma péssima conclusão que durou muito tempo. Alguns anos mais tarde li "A morte e a morte de Quincas Berro d´Água", uma crítica bem humorada, que me agradou, mas não me revelara o verdadeiro escritor.

Cheguei, antes tarde do que nunca, ao “Capitães da Areia”. Finalmente entendi porque Jorge Amado era mal visto em seu tempo, ficou claro porque a Rede Globo, diante da impossibilidade de negar o valor de sua obra, ressalta apenas os aspectos da sensualidade de seus livros.

Cecília Amado se dispôs ao trabalho dificílimo de adaptar às telas o livro de seu avô. A dificuldade está exatamente na diversidade de personagens do livro, cuja história individual de cada um pesa muito no resultado final, mas não caberia no espaço de um filme. Uma alternativa muito viável seria a produção de uma série, com capítulos interligados e contando detalhadamente tanto as histórias diretas do livro, quando um pouco de suas descrições psicológicas e histórico dos personagens, mas sem dúvida o resultado incomodaria a muita gente.

Escrito em 1937, Capitães da Areia é assustadoramente atual. Jorge Amado usa a literatura para, da forma mais didática possível, explicar que o problema de menores infratores vai muito além da falta de punição ou má índole, blindando sua análise lúdica de críticas superficiais e antecipando argumentos que apesar de falhos continuam sendo usados amplamente até hoje.

A comparação entre literatura e suas adaptações ao cinema costuma ser muito injusta. São linguagens diferentes e, sobretudo, intenções bem distintas, portanto não cabe julgar qual é ‘melhor’, já que seria inviável colocar sob os mesmos critérios um livro que tem todo o espaço para desenvolvimento de personagens, divagações psicológicas e narrador onipresente, com um filme que deve condensar em menos de duas horas o conteúdo de origem, contando com atores mirins que não tinham experiência em atuação.

Superada a falácia de eleger qual a melhor obra, vemos no filme pontos importantes do livro, que em alguns planos podem ter ficado muito reduzidos ou simplificados, mas que ainda assim retratam dificuldades e artimanhas desenvolvidas pelos meninos de rua, que existem, independente da organização do grupo Capitães da Areia, e lutam para além de superar os percalços da vida, lidar com o preconceito de quem espera de adolescentes – por vezes crianças – maturidade e discernimento habitualmente ausentes até mesmo em adultos.

Infelizmente o filme deixa margem para críticas pouco instruídas, não sobre sua produção, mas sobre o próprio conteúdo exposto, já que é um prato cheio para aqueles que enxergam claramente os delitos dos jovens para com a sociedade em que vivem, fechando os olhos de forma muito conveniente para o caminho contrário e se negando a considerar que quando não há boas alternativas, o jeito criar algo que individualmente seja ‘menos pior’.

O que também não tem tanto destaque nas telas é a ética presente entre os meninos do grupo, ou seja, muitas atitudes podem ser consideradas imorais perante a uma sociedade habituada com a competitividade desenfreada, desta forma, àqueles acostumados a hostilidade de quem quer ser promovido no emprego, mesmo que às custas de, até então, colegas de trabalho, a lealdade dos meninos aos Capitães de Areia como um grupo é censurável. O argumento alegado é o de que não deve haver lealdade com o que está fora da lei, porém o que fica implícito nesse tipo de crítica é a vergonha de admitir que a ética entre os Capitães de Areia esta ausente em muitos ambientes corporativos.

Mais esperançoso que o livro, o filme termina indicando finais hipotéticos e de forma bastante otimista. Na verdade o que é narrado como um vislumbre é o que se concretiza no livro (sem detalhar para não estragar o final de quem ainda não viu), porém ao contrário do otimismo indicado no filme, o livro coloca as mesmas situações de forma mais melancólica, mais crua, mais triste por ser mais real.


quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A espuma dos dias (L'Ecume des jours)

Por não ter grande tradição em movimentos artísticos e literários o Brasil acaba pagando um preço alto, ou seja, não ter artistas que se destacam em determinadas correntes. É o que acontece com o surrealismo, por exemplo. Apesar de ser uma das grandes influências do movimento modernista, este sim com mais relevância em nossa sociedade, conhecemos (mal) o surrealismo apenas através de artistas estrangeiros, sobretudo o espanhol Salvador Dalí.

Com uma visão de mundo tradicionalmente utilitarista, que marginaliza o que não é objetivo, acabamos nos afastando também de qualquer forma de expressão alternativa, como o realismo fantástico, marcante em vários países da América Latina. Desta forma um filme como “A espuma dos dias”, do francês Michel Gondry, costuma soar estranho em terras brasileiras.

Diferente de nossas comédias sem graça, com histórias fáceis e finais felizes, Gondry traz uma adaptação da obra de Boris Vian repleta de referências culturais, desde a clássica cena de “Um cão de Andaluz” em que uma personagem tem o olho cortado com uma navalha, aqui bem mais suave ainda que um tanto aflitiva, até o filósofo francês Jean Paul Sartre, que no filme vira Jean Sol-Partre, passando pelas claras referências a Woody Allen.

Com técnicas simples de stop motion associadas a efeitos especiais mais elaborados, o filme cria um universo onírico que rompe completamente com a relação espaço-tempo convencional. Neste ponto a obra se aproxima do realismo fantástico já citado, pois apresenta com extrema naturalidade fatos completamente inusitados, fazendo com que ao abrir mão da necessidade de cenas factíveis, os personagens fiquem livres para mesclar sonho e realidade, característica típica do surrealismo, para concretizar a narrativa.

O enredo do filme é simples, narra em linhas gerais uma história de amor entre Colin (Romain Duris), até então bastante solitário e desajeitado com as mulheres, e Chloé (Audrey Tautou, a eterna Amélie Poulain). Estão nessa trama todos os elementos de uma história que tem como base a sequência utilizada desde as clássicas obras gregas. A particularidade é que, diferente de outras correntes literárias, que primam pela perfeição, omitindo os percalços da realidade, o surrealismo exterioriza esses percalços, expondo tudo de forma caricata, cômica e desajeitada.

Até mesmo a relação com as drogas, frequentemente associadas aos artistas surrealistas que por vezes utilizavam de seus efeitos para conseguir resultados mais vigorosos nos trabalhos, está presente entre os personagens do filme. As substâncias que distorcem os sons, as cores e as formas são proibidas, recriminadas, porém não deixam de marcar presença e render cenas cômicas, assim como os fatos inesperados da vida, tão bem trabalhados no filme.

É curioso que quando somos crianças gostamos de desenhos insanos, que tenham as cores explodindo na tela, com personagens inanimados interagindo com seres humanos e/ou animais. Aos poucos vamos crescendo e aceitando a falsa necessidade de seriedade, para que a realidade que nossos olhos nos mostram não seja manchada com o que foge aos nossos sentidos.

A ideia do surrealismo, muito bem trabalhada neste filme, é exatamente hipervalorizar metáforas aparentemente sem sentido para narrar fatos cotidianos e mostrar, ou sugerir, deixando a cargo da imaginação daqueles que assistem enxergarem as faces que a tendência romântica dos filmes costuma ocultar.

Haveria metáfora mais suave para um câncer do que afirmar que a personagem tem uma flor de lótus crescendo no pulmão? O eufemismo não tira a gravidade do fato e seu desdobramento, também repleto de metáforas, é uma forma de encenar um cotidiano extremamente difícil de forma lúdica.

O enredo não abandona os passos clássicos da construção de uma narrativa, mas mostra comédia e drama com um viés distinto, colocando um pouco de magia no cotidiano e tentando suavizar de forma metafórica os problemas que insistem em aparecer na vida real e que no filme acabam se tornando mais um diferencial para comédias com enredo irritantemente linear.

Apostar na retomada de um movimento artístico costuma ser ineficaz, ou seja, o surrealismo é uma corrente historicamente superada, que deixa raízes como todas as outras, mas não pode ser ressuscitado. Ainda assim, da mesma forma que o romantismo teve seu ápice há muito mais tempo e continua contaminando, muitas vezes de forma extremamente prejudicial, as obras de artes contemporâneas – sobretudo a literatura e cinema – seria muito interessante se mais artistas se inspirassem em fontes surrealistas para narrativas alternativas às tradicionais.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Muito Além do Cidadão Kane (Beyond Citizen Kane)

Cidadão Kane é o personagem fictício do filme homônimo de Orson Welles. Inspirado na vida de um magnata do jornalismo norte americano, Kane manipulava informações e exercia seu poder transitando entre política e imprensa.

Em 1993 uma emissora britânica lançou o documentário "Muito além do cidadão Kane", dirigido por Simon Hartog, com pinceladas sobre a sociedade brasileira – a ser apresentada aos ingleses – e relacionando fortemente a figura de Roberto Marinho, na época com 87 anos, à história recente do Brasil.

Em uma época em que a TV brasileira tinha ainda menos concorrência do que hoje, sem a alternativa da internet, canais por assinatura e apenas quatro canais abertos (Globo, SBT, Manchete e Bandeirantes), já era notável a hipocrisia de estrelas como Xuxa – mais uma rainha para a monarquista rede Globo, junto a Pelé, Roberto Carlos, entre outros que receberam a coroa da emissora – que construía um mundo de sonhos junto com suas paquitas, loiras, magras, jovens e bonitas.

Apesar de ter abandonado os longos programas matinais para crianças, ainda notamos o empenho de produções para o público infantil, hoje não só da Globo, para vender a imagem de sonhos da infância, que escancara o contraste entre quem passa o dia com um copo de leite e socialites que despejam dinheiro em seus bichinhos de estimação.

Sobre a sociedade brasileira, o filme indica que 50% do país pertenciam a 1% da população. Considerando que se este número mudou, não foi para muito melhor, a maioria da população ainda tem acesso apenas às imagens da mercadoria anunciada. A venda é de sonhos, não de produtos. Um carro dito popular e sendo anunciado como uma grande oferta, por quase 60 salários mínimos, serve para duas coisas para a massa que não faz parte do 1% citado: parcelar um carro em infinitas prestações, gerando renda ao banco, à concessionária, à montadora, etc., ou sonhar com o dia utópico em que poderá comprar um automóvel.

A princípio isso poderia gerar uma crítica ética, à qual a emissora poderia se esconder utilizando o falso argumento de que produz conteúdo e quem não gosta tem a liberdade de mudar de canal. O problema maior aparece quando vemos que a concessão às televisões, sobretudo no início recente da TV brasileira, era dada diretamente pelo presidente, sem nenhum critério técnico.

Não é difícil perceber que opositores ao governo jamais receberiam a autorização para um veículo de manipulação, digo, comunicação em massa. Desta forma, com base na amizade, Roberto Marinho conseguiu sua primeira concessão dada por Kubitschek.

Recentemente, em resposta às manifestações populares que diariamente entoavam o coro de “a verdade é dura, a rede Globo apoiou a ditadura”, a emissora admitiu o apoio, em nota seguida de uma retratação. Alegou ter sido enganada, assim como toda a sociedade brasileira, uma vez que os militares haviam prometido uma intervenção breve, que na verdade durou duas décadas.

O que o filme mostra, a Globo esconde e a sociedade sabe é que a emissora apoiou todos os presidentes, em maior ou menor grau, ajudando a derrubar os mesmos quando a queda já era inevitável. Na via de mão dupla entre poder executivo e organizações Globo (que incluem também mídia impressa, rádio e, atualmente, internet e TV por assinatura) há um pacto de não agressão com limites muito nítidos.

Por um lado o governo pode não renovar a concessão da emissora, por outro esta tem poder de sobra para derrubar qualquer presidente. Assim trocas de farpas ocorrem com precisão cirúrgica para que este equilíbrio, benéfico para ambas as partes e prejudicial para o país, seja mantido.

Há 20 anos o documentário já questionava a idoneidade da Globo, tanto com hipóteses de manipulação de dados em relação ao crescimento econômico durante a ditadura militar quanto com fatos dificilmente refutáveis como a manipulação do debate entre Lula e Collor, a “maquiagem” do início da campanha das Diretas Já, a distorção de pesquisas eleitorais e, agora, o apoio à ditadura militar.

Pelo apoio à ditadura houve um pedido de desculpa, no qual exaltavam a democracia e a liberdade. Curioso já que este mesmo documentário tem sua exibição proibida no Brasil, graças ao peso político da Globo. Sua exibição sempre ficou restrita a locais não comerciais e agora na internet.

Com tantas incoerências e mentiras que rondam a emissora família Marinho, questionar sua atual veiculação de notícias é mais que pertinente. É latente a diferença que a emissora dispensa às notícias de corrupção ou escândalos políticos e a manipulação dos telespectadores, eleitores, continua forte, ainda que o monopólio da terceira maior emissora do mundo venha diminuindo.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Imaginaerum

Logo após os finlandeses do Nightwish lançarem o sétimo álbum de estúdio, Imaginaerum, a ideia de um filme baseado na obra ganhou forma. A parceria não tão explorada entre cinema e música rendeu o longa homônimo, que é um bom filme e mesmo não sendo uma obra-prima do cinema, tem pontos interessantes e quem sabe não inspira outras bandas a complementarem o trabalho de estúdio nas telas.

O diretor Stobe Harju também assina o roteiro, junto com Tuomas Holopainen, tecladista e principal compositor da banda. Como era de se esperar, o enredo traz muito do universo onírico e grandiloquente, que marca o estilo da banda, trazendo ainda referências cinematográficas marcantes, sobretudo com o boneco de animação, que tem clara inspiração no cineasta Tim Burton.

A história do filme gira em torno de Tom Whitman (Quinn Lord, Tuomas Holopainen e Francis McCarthy, aos 10, 47 e 70 anos), que a beira da morte devido a um AVC, delira em coma, fantasiando ainda ser criança. Sua memória da vida adulta não existe e em seu mundo de fantasia – onde podemos conferir as músicas do Nightwish, inclusive com os músicos tocando, fato que a princípio parece interessante, mas nem sempre foi bem encaixado nas sequências do filme – o velho homem segue sendo uma criança.

Fora do mundo onírico de Tom, sua filha Gem Whitman (Marianne Farley) não chega a ter grandes problemas em ver o pai à beira da morte, encarando com indiferença a escolha de desligar ou não os aparelhos que o mantém vivo. Tangenciando o tema da eutanásia, que não é a ideia do filme, o ponto central é que Gem se sente rejeitada pelo pai, carente da atenção que ele nunca lhe deu.

Ainda que esse enredo tenha se desenvolvido de forma interessante no filme, a inexperiência do diretor com este seu primeiro longa e mesmo de Tuomas, com seu primeiro contato com o cinema, ficam latentes em algumas partes, não sendo suficientes os requintes de superprodução para dar ao filme a qualidade final que mereceria.

Mesmo assim vale a pena um olhar mais atento sobre o desdobramento da história de pai e filha, que mal se reconhecem nestes papéis familiares. Em meio ao universo de sonhos e a fria realidade somos levados por um corredor estreito, esbarrando ora na insegurança da filha, ora na desconfiança, dada a demência do pai. O fato é que independente de filmes, fantasias ou enfermidades, dois pontos de vista sobre o mesmo fato, ou sobre a mesma relação ‘pai e filha’ nunca são iguais.

A versão que temos sobre nossas próprias vidas é construída a cada vez que relembramos fatos vividos. Por mais detalhistas que tentemos ser, ou talvez exatamente por sermos detalhistas, alteramos mentalmente os acontecimentos, excluindo algumas coisas e acreditando que realmente aconteceram pontos gostaríamos que tivessem acontecido. Assim Gem construiu a própria imagem do pai, corroborando a cada dia sua ideia pré-concebida de abandono. Por outro lado, alterado pelos problemas mentais, o pai vivia sonhos grandiosos para sua infância, desde seu boneco de neve que ganhava vida até o duelo entre bem e mal, vivido imaginariamente.

Em um filme fica mais fácil acompanhar duas versões da mesma história, confrontando os pontos contraditórios, conferindo de perto os equívocos e tirando as próprias conclusões sobre o que é apresentado. O que nos faz pensar em uma analogia com a vida real, não necessariamente em um conflito familiar, mas em relação à própria imagem que fazemos de outras pessoas.

Diante de uma situação em que todos os envolvidos juram ter completa certeza sobre o passado, em versões conflitantes entre si, como garantir que a veracidade dos fatos já não foi alterada, ainda que sem intenção, pelos sentimentos tendenciosos de nossa própria consciência?

Na verdade essa garantia não existe. Muitas vezes sequer uma acareação pode resolver determinados impasses e, não tendo na vida o recurso lúdico do cinema para retratar fatos passados, nos resta considerar a hipótese de nossas certezas não serem tão corretas quanto pensamos, e quem sabe considerar os benefícios da dúvida.

Com o filme o Nightwish mantem a característica de instigar aqueles que conferem suas obras a não somente contemplar o conteúdo, mas também pensar nos temas trabalhados e buscar significados em metáforas e histórias.


quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Na quadrada das águas perdidas

O Brasil é um país múltiplo. Em todos os sentidos. Chega a soar estranho nos referirmos a ele no singular. Seria muito mais condizente falarmos em Brasís, vários, especificando sobre qual exatamente queremos dizer quando o singular Brasil é citado.

Dentro do mesmo nome há desde grandes megalópoles como a cidade de São Paulo até o sertão nordestino, isolado e aparentemente inóspito, enquanto um olhar mais atento não revela a riqueza local.

É este olhar atento que os diretores Wagner Miranda e Marcos Carvalho nos oferecem, traduzido brilhantemente pelo sertanejo Olegário (Matheus Nachtergaele), que como em uma poesia sem palavras cruza o sertão feito um personagem de João Cabral de Melo Neto, apresentando com naturalidade as dificuldades e recompensas que a terra hostil tem a oferecer.

Munido de poucos bens materiais, Olegário deixa a casa de pau-a-pique na companhia de duas cabras, na carroça puxada pelo burro, com a escolta de um cão e sob o olhar simbólico do urubu, que parece segui-lo de perto.

Durante a peregrinação nordestina, famosa desde o clássico “Vidas Secas”, vemos o homem em comunhão com o meio que o cerca. Olegário se diferencia de Fabiano, o protagonista que Graciliano Ramos imortalizou, por ser ainda mais solitário e, consequentemente, ainda mais calado. O filme não tem diálogos, não tem monólogos, não tem palavras. Tudo é dito com imagens, com as cores vivas e quentes do sertão.

A serpente denunciando a morte; as tartarugas (ou algum parente próximo) anunciando a vida, que assim como as recém-saídas do ninho tende a ser lenta, porém resistente ao sol e à seca; a ave de rapina entre os dois extremos, a espreita de uma morte que lhe garanta a própria vida. São várias as metáforas que enriquecem a caminhada de Olegário, que entre guerras e pactos com o sertão, segue seu caminho obstinadamente.

Diante das dificuldades que parecem tornar a vida quase impossível, podemos ser tentados a pensar que aquela condição humana é inadmissível, sobretudo com a existência velada da chamada indústria da seca, que lucra e, portanto sustenta muitas daquelas dificuldades. Entretanto não é só com as recompensas que o sertão oferece ao nordestino que podemos encarar sua vida como muito mais natural que a vida urbana.

Muitas dificuldades do sertanejo poderiam ser sanadas com medidas relativamente simples e alguns investimentos em infraestrutura, porém não seria uma alternativa viável pensar no sertão urbanizado, com muitos elementos que só estão presentes na cidade. Mesmo que o sertanejo tenha direito a serviços básicos, aos quais todos os cidadãos têm, pelo menos em tese, direito, aquele ambiente não deve ser totalmente descaracterizado ou modificado por intervenções humanas.

Um exemplo prático pode ser notado a partir de Guimarães Rosa. O médico/escritor passou parte da vida vagando pelo sertão mineiro, visitando povoados isolados para cuidar da população doente. Tudo isso no lombo de animais e sem a infraestrutura de um grande hospital. As histórias vividas viraram grandes obras da literatura brasileira.

Hoje, quase cinquenta anos depois da morte de Guimarães Rosa, a figura do médico que viaja sem rumo e sem estrutura, em busca de moléstias a serem tratadas, ficou para trás. A tentativa de trazer médicos de outros países para atuarem em áreas isoladas, como o sertão retratado no filme, esbarra no falso argumento de que a carência do país não é de profissionais, mas sim de infraestrutura.

De fato, os investimentos no desenvolvimento de cidades são precários e isso influencia na baixa qualidade de serviços de saúde, educação, segurança, etc., entretanto esperar que locais ermos sejam reestruturados e cidades sejam construídas no lugar de vilarejos seculares é utopia inviável e desnecessária.

Em todo o Brasil, ou em muitos brasís, há diversos ‘olegários’, que precisando de serviços básicos não podem esperar pela chegada de investimentos que, mesmo contando com uma política extremamente eficiente, diferente da que estamos habituados, demorarão muito tempo para chegar.

O que fica claro no filme é que dificuldades podem ser contornadas sem que a harmonia entre homem e meio-ambiente seja radicalmente alterada, sendo possível a união de conhecimentos empíricos com pequenas intervenções tecnológicas que facilitem a vida daqueles que vivem em locais tão distantes. Não é imprescindível a construção de toda uma infraestrutura de primeiro mundo para que só então profissionais possam atuar.


terça-feira, 13 de agosto de 2013

A Verdadeira História de Lena Baker (The Lena Baker Story)

Uma mulher que confessa o assassinato do patrão é julgada e condenada à morte nos EUA – não é um spoiler, esse desfecho já é apresentado no trailer ou na sinopse. A princípio essa sentença deve ganhar muitos adeptos. Com sede de vingança, parte considerável da população tem se achado no direito de julgar e condenar, geralmente de forma bastante impiedosa.

Assim foi com Lena Baker (Tichina Arnold) em 1945. Se hoje, mais de um século após seu nascimento, a sociedade ainda conta com o ranço do preconceito racial e com o machismo, ambos teoricamente inexistentes em sociedades ditas democráticas, mas que por vezes aparecem de forma escancarada na sociedade, podemos imaginar no início do séc. XX, no sul dos EUA.

Este é o cenário do filme do diretor Ralph Wilcox, que nos apresenta a protagonista desde a infância, passando por várias dificuldades devido ao preconceito em relação à cor de sua pele. Semelhante à vida dos negros no Brasil, mesmo após o fim da escravidão institucionalizada os EUA não davam muitas alternativas aos descendentes de uma imigração forçada.

Os negros daquela região acabavam forçados a trabalharem nas fazendas de algodão, de uma forma ou outra subjugados aos brancos. Essa obrigação não era direta, ou seja, teoricamente os negros já estavam livres para ganharem a vida como quisessem, porém o trabalho pesado da lavoura era o único que aceitava os ex-escravos, que evidentemente tinham o acesso à educação proibido. 

Sem estudo e sem alternativa de trabalho para o próprio sustento, Lena começa a se prostituir ainda jovem. Como sempre este é um campo aberto para a união de machismo, moralismo e preconceito racial. Quem frequenta os prostíbulos e procura os serviços das prostitutas negras são os homens brancos, muitas vezes casados e frequentadores de igrejas aos domingos. Apesar disso a culpa sempre cai sobre as mulheres, que supostamente levam os homens para o chamado mau caminho – pobrezinhos.

O desenrolar da vida de Lena indicava mais uma negra dentro do padrão de vida imposto, ou seja, explorada para conseguir uma vida minimamente aceitável, com filhos que muito provavelmente seguirão os mesmos passos por falta de alternativa. A particularidade se dá por nuances do destino.

Como tantas outras, Lena foi abusada várias vezes pelo patrão. Lutando contra a violência física e contra a pressão psicológica por parte da família branca que, como sempre, tentava colocar a culpa na vítima, em uma tentativa de omitir o alcoolismo de seu patrão. O subterfúgio de culpar o agredido não é muito criativo, porém infelizmente é tão convincente que até hoje é frequente, em casos de estupro, a menção às roupas curtas ou comportamento da vítima.

Se optasse por tentar enfrentar a opressão e lutar por direitos que na época nem eram reconhecidos, Lena esbarraria na repressão que seria direcionada não só a ela, mas também à família. A mulher que tolerou até o limite extremo a falta de liberdade e os abusos teve que enfrentar um júri composto exclusivamente de homens brancos – que representavam exclusivamente a classe que a oprimiu durante toda sua vida. Alguma dúvida de que o julgamento tinha cartas marcadas?

As nuances de um julgamento, como a composição do júri, influencia julgamentos em todos os casos. Não são raras as lutas feministas para que estupradores sejam julgados por mulheres, que não querem vingança, mas justiça; juízes compostos pela elite econômica, que têm condições de dedicar a vida toda à carreira de direito, julgam criminosos que muitas vezes sequer sabem ler, com a arrogância da meritocracia, típica daqueles que herdaram tudo o que têm dos pais.

Diante de um caso como o relatado no filme, as pessoas tendem a se esconder com o falso argumento de que os crimes não devem ser impunes. De fato não devem, mas o direito não é uma ciência exata. Quem quer justiça com as próprias mãos ou exige uma pena draconiana para qualquer delito, deveria pensar só um pouco no contexto histórico dos crimes.

Assim como o julgamento de Lena Baker foi baseado em preconceitos históricos, no Brasil, há poucas décadas havia, por exemplo, o crime de honra. Um estupro era considerado crime contra o marido da vítima, não contra a mulher abusada. Hoje isso é absurdo, mas como soarão os julgamentos tão enfáticos que a população dispensa a crimes cotidianos neste início de séc. XXI?


terça-feira, 6 de agosto de 2013

Melaza

Melaza retrata um pouco da vida de camponeses em Cuba. A migração de boa parte da população mundial do campo para as cidades, depois da revolução industrial, tem criado em todos os países identidades distintas entre a população. Aqui o diretor Carlos Lechuga deixa claro que tais identidades demandam políticas também distintas.

Em todo o mundo a vida acaba sendo mais difícil para os camponeses, que por vezes acabam passando necessidades. Parece difícil a quem sempre viveu na cidade compreender que o cotidiano rural é bem distinto de uma vida urbana.

Em Melaza, cidade fictícia que como o nome indica vive do cultivo da cana, Monica (Yuliet Cruz) vive com sua filha (Carolina Márquez), o marido Aldo (Armando Miguel Gómez) e a mãe (Ana Gloria Buduén) em uma cadeira de rodas. Às dificuldades comuns dos camponeses a família deve incluir também o delicado período da economia cubana com o declínio do mercado de açúcar, e o empenho do governo para impedir a concentração de renda, que por vezes acaba prejudicando os pequenos produtores.

A tradição de práticas esportivas da ilha mantém forças, mas a falta extrema de recursos faz com que Aldo tenha que lecionar natação em uma piscina sem água, apenas treinando o movimento ideal. A indústria que Monica trabalha já faliu, mas deve manter as aparências como se estivesse funcionando para manter os recursos que recebe.

Se a especulação imobiliária é um grande problema em grandes cidades, concentrando a renda nas mãos de quem possui muitos imóveis – muitas vezes herdados ao longo de várias gerações da família – e excluindo de algumas partes da cidade quem não tem dinheiro para pagar o aluguel das casas, o extremo controle estatal para evitar tal prática pode implicar em tirar a fonte de renda de uma família como a do filme, que tenta alugar um quarto apenas para aumentar um pouco a renda.

O mesmo ocorre com o comércio. Não é muito difícil perceber que o livre comércio não é tão livre nas cidades brasileiras, se pensarmos que, sobretudo em determinados ramos, há poucos comerciantes controlando preços e ofertas. Para barrar esse tipo de exclusão foi imposta a necessidade de uma autorização estatal para a venda.

O problema é que muitas vezes tudo fica tão burocrático que um pequeno produtor quer apenas vender mercadoria para sobreviver, ou, no caso de Aldo, gostaria de pegar carne com um amigo para vendê-la, pagando por isso depois, mas não pode devido à falta de autorização.

Ao contrário dos pequenos produtores rurais brasileiros, Monica e sua família não são absorvidos por grandes latifundiários em conluio com empresas, todavia à quem passa necessidades não faz grande diferença quem é o agente causador dos problemas.

Um estado que intervenha com o intuito de não permitir a concentração extrema de renda não só é benéfico como necessário, porém é impossível prever de um gabinete todas as implicações das intervenções postas em prática. O que vemos em Melaza é a distância entre estado e moradores, talvez bem próxima da distância entre essas mesmas partes no Brasil, porém sem a presença de latifundiários.

Diante de necessidades sociais o desenvolvimento das ações pessoais é praticamente um roteiro pré-escrito, por se repetir com frequência. As pessoas tentam burlar as leis, arriscam quebrá-las e evitam até a última esperança romper com os valores morais. Essas ações, que não deixam de ser imorais a quem as praticam, são postas em prática pela necessidade, e podem ser representadas desde uma inocente ação de criança, que rouba um doce que havia sido deixado como oferenda, até adultos que precisam sustentar a família, mais que sustentar a moral.

O dever básico de um estado é ouvir a população sob sua tutela, e isso deve ser feito de forma contínua, para que as demandas sociais, essencialmente dinâmicas, não caiam na ilusória pretensão dos governantes de sanar problemas com medidas anacrônicas.

Igualmente importante é que todas as pessoas sejam ouvidas, pois só assim a desigualdade pode ser combatida de forma eficiente. Ainda que as leis devam ser aplicadas de forma igualitária, é impossível planificar a sociedade ao ponto das mesmas medidas para zonas urbanas serem adequadas também às zonas rurais.

O poder estatal com influência direta do capital privado é extremamente nocivo – fato que pode ser comprovado folheando qualquer jornal brasileiro – porém o estado deve, a qualquer custo, servir a população, o que não deve ser restrito a um pacote esporádico lançado de um avião aos moradores, como mostrado no filme.


terça-feira, 30 de julho de 2013

Sociedade dos poetas mortos (Dead poets society)

A Welton School, retratada no filme do diretor Peter Weir, tem muitos aspectos típicos de instituições de ensino norte-americanas. O internato tem fortes bases religiosas e segue uma metodologia extremamente ortodoxa. Mesmo com algumas particularidades em seu funcionamento, muito do que é exposto no filme pode ser útil em uma análise sobre o sistema educacional, que costuma seguir alguns padrões nem sempre benéficos.

O foco unidirecional da escola em preparar seus alunos para a universidade é posto como virtude por seus diretores, entretanto esconde a supressão dos sonhos individuais, já que fica claro no filme a decisão dos pais sobre o futuro dos filhos. Os jovens não chegam a fazer grandes questionamentos em relação à interferência, nem revindicam liberdade de escolha. A rebeldia dos internos fica por conta de atitudes consideradas intransigentes, como fumar escondido nos quartos e fazer piadas com os religiosos da escola.

O que quebra a letargia do sistema de ensino da referida escola – que tem como um dos quatro pilares a tradição – é o professor de literatura inglesa, John Keating (Robin Williams), que instiga os estudantes a, pouco a pouco, usar a cabeça para pensar e criar, não apenas acumular conteúdo. A princípio mesmo as pequenas mudanças, como levar os estudantes para fora da sala de aula, já soavam estranhas àqueles acostumados ao estilo tradicional e ineficiente de aulas, em que os professores apenas falam e os estudantes apenas escutam.

Em pouco tempo, por apresentar alternativas muito mais atrativas, Keating cativou seus alunos e mostrou que o conteúdo escolar não precisava ser necessariamente um martírio. Os textos lidos poderiam ser inspiração para que eles escrevessem seus próprios poemas, expressassem as próprias emoções e sentimentos ao invés de simplesmente viverem a vida que seus pais escolhessem. Poderiam aproveitar os espaços físicos da escola, que apesar de serem extremamente atraentes, eram mal aproveitados por aqueles que utilizavam apenas a opressora sala de aula. Enfim, Keating ensinou na teoria e na prática o significado da expressão latina Carpe Diem.

Foi ao procurar sobre o passado do professor, que fora aluno da Welton School, que os estudantes conheceram a “Sociedade dos Poetas Mortos”, um grupo de estudantes que se encontravam fora do horário escolar para lerem poemas – clássicos e de autoria própria – simplesmente por gostar disso, não por serem obrigados para fazer uma prova.

O problema, ao menos para os religiosos que dirigem a escola, é que quem aprende a estudar por ver sentido naquilo que faz, ao invés de absorver conteúdo sem saber por que, também desenvolve senso crítico, que costuma ser tolhido em escolas e, sobretudo em igrejas. O professor, que já não era bem visto pelos diretores, por romper com o sistema ortodoxo de ensino, passou a ser muito mais questionado quando seus alunos começaram a reivindicar mudanças na escola – fato considerado uma afronta.

É interessante notar que as ações de Keating não vão além de estimular seus alunos. Ele intervém pouco no cotidiano da sala com a expectativa de estimular a criatividade sem limites, o que é bastante louvável, porém acabou abdicando dos benefícios da experiência, que poderia guiar os jovens, não como um limite para a potencialidade dos mesmos, mas como responsabilidade para negociar e expor suas opiniões críticas em relação à escola. Talvez essa tenha sido a falha do professor.

O estímulo à criação em sala de aula é fundamental para dar sentido ao conteúdo aprendido, transformando o mesmo em conhecimento, mas isso não dispensa a presença do professor, sobretudo na orientação sobre como lidar com adversidades dentro de uma hierarquia de poder que não se desfaz repentinamente.

Se em um extremo existe a intransigência de pais e diretores da escola, que não abrem mão de preparar os estudantes para um futuro bastante longínquo para os padrões dos adolescentes, no outro existe a grande liberdade jogada no colo de estudantes que não estavam acostumados a lidar com ela. É verdade que, conforme deixa claro o Prof. Keating, não há limites para as realizações dos jovens, mas a maturidade que pode partir do mestre auxilia no sentido de não apenas ensinar o conceito de Carpe Diem, mas mostrar que é mais válido estende-lo para toda a vida, sabendo recuar estrategicamente em determinadas situações, do que vivê-lo em sua plenitude por pouco tempo, por não compreender que as relações sociais existem e não mudam de uma hora para a outra.

A Sociedade dos poetas mortos pode ser bem mais que um filme inspirador e bonito. Abre espaço para muitas críticas ao sistema educacional e à forma como as pessoas interagem – ou deveriam interagir – no ambiente escolar. Entre tantos problemas que poderiam ser citados em relação à educação, a falta de diálogo entre os agentes ainda tem grande destaque.



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