terça-feira, 29 de novembro de 2011

Nina

O diretor Heitor Dhalia foi ousado ao dirigir em seu primeiro longa uma adaptação da obra Crime e Castigo, de Dostoievski. Trocando o protagonista por Nina (Guta Stresser) e a Rússia do século XIX pelo Brasil do século XXI, vemos o tema central da obra desenvolvido pelo diretor e os dramas particulares, as crises psicológicas e os sentimentos que há mais de cem anos remoem tanto o personagem da literatura, quanto os que o acompanharam, muito bem representados em cena.

A narração de Nina antes mesmo do início do filme já dá a entender que, na divisão proposta por Dostoievsky entre pessoas ordinárias e extraordinárias, ela opta pela segunda categoria. Ao longo da trama isso se traduz como alguém que se recusa a aceitar um status quo absurdo e inadmissível, que sem nenhuma justificativa, ainda que cínica, tenta tirar da protagonista, recém chegada a uma grande cidade, as oportunidades de viver a vida de forma prazerosa, ao invés de manter-se constantemente sob a pressão das obrigações diárias de trabalho e contas para pagar.

É curioso – e preocupante – notar que alguns elementos descritos inicialmente há tanto tempo na Rússia podem ser transpostos com bastante fidelidade para a vida contemporânea no Brasil, sem que isso cause estranheza ou anacronismo. A vida da personagem retratada pode ser bastante dura, mas a alternativa de ceder às obrigações e se encaixar no padrão de acordar cedo, passar o dia trabalhando e ganhar dinheiro suficiente apenas para pagar o quarto alugado não é nada sedutora para Nina.

Em oposição à jovem sonhadora, que veio para uma grande cidade para viver, ao invés de se manter viva, e prega no quarto os desenhos que faz para extravasar seus sentimentos, o diretor apresenta Dona Eulália (Myriam Muniz), a velha mesquinha que ao alugar um dos quartos para Nina tenta cobrar por cada mísero detalhe que pode ser rentável de alguma forma. Não há nada de extraordinário nela, a construção da personagem que mantém seu apartamento escuro, mal ventilado, com mobília antiga e sua voz aguda e tremula é condizente com suas atitudes tão duradouras, já que se encaixam em um antigo romance russo e em um filme brasileiro contemporâneo.

A velha mesquinha e irritante, presa às formalidades e individualista ao extremo é uma forma de criticar, exacerbando, o posicionamento legalista e mantenedor de uma antiga ordem vigente. Entre as diversas formas de encarar o individualismo em uma grande cidade, é possível pensar na satisfação de Dona Eulália com sua vida de cárcere voluntário, fechando qualquer brecha para tudo o que há para fora de seu apartamento. O problema é que Nina é a simbologia contrária, com sua juventude que anseia pela vida, se esforça por quebrar padrões e tenta sempre propor algo novo. É neste ponto que o individualismo da velha senhora passa a ser questionável, pois extrapola os limites da própria pessoa e passa a tentar ser imposto aos que estiverem por perto.

Com as bandeiras de liberdade e igualdade levantadas há dois séculos, na Revolução Francesa, a ideia de liberdade seduz e inspira a jovem Nina a romper as inúmeras amarras que tentam arrastá-la para a vida monótona e sem brilho, mas também tem inspirado, por séculos, a velha Eulália, que parece trazer seus conceitos da Idade Média e acredita que a liberdade está no direito de ignorar o outro, vivendo em sociedade com a atitude paradoxal de ser legalista até o ponto em que as leis são vantajosas para si.

Já a igualdade – que a princípio visa os mesmos direitos e oportunidades – nas mãos de tantos que, mesmo sem admitir, se encaixam muito bem no perfil de Dona Eulália, vem ganhando contornos de planificação dos indivíduos, ou seja, o padrão de comportamento é imposto para que os indivíduos sejam iguais ao invés de seus direitos e oportunidades. Esse embate é o ponto central que rege a vida de Nina. Até que ponto ela pode lutar pelo seu direito de ser livre e manter suas obrigações, mas acabar com as explorações (termos que vêm sendo constantemente confundidos)?

Aqui o filme surpreende se distanciando do livro, pois se Dostoievski já indica no título de sua obra que houve um crime, a tendência de muitas interpretações é de barrar a simbologia da velha ordem e dos novos questionamentos e se ater ao crime em si, que excluindo as metáforas é evidentemente reprovável. Sem entrar em detalhes sobre o final do filme, após vivermos toda a angústia de Nina, com o medo servindo de barreira para sua vida, nos deparamos com algo que deixa o filme bastante emblemático e curioso. Talvez uma alternativa à forma da morte de uma velha (ideologia) de controle dos indivíduos e imposição de comportamento através da supremacia econômica.


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