quinta-feira, 28 de julho de 2011

O senhor das moscas (Lord of the flies)

Adaptado do romance homônimo, escrito por William Golding, a obra do diretor Harry Hook mantém o valor pedagógico de análise social. Após a queda de um avião militar no meio do oceano um grupo de jovens cadetes sobrevive e consegue chegar até uma ilha, sem a presença de adultos, salvo um militar gravemente ferido e impossibilitado de coordenar as crianças.

O início do filme mostra um pouco das características que os meninos já tinham antes de chegar à ilha. Como nos indica o casal de sociólogos Peter e Brigitte Berger, as instituições começam a agir sobre o indivíduo muito cedo e no filme fica clara a presença da educação militar recebida pelos garotos, com hierarquias e respeito pelas patentes, a prática de bullying – principalmente ao Piggy (Danuel Pipoly), que deixa claro sempre ter sido tratado daquela forma – e a impressão que os meninos têm do exército.

Como já indicava Émile Durkheim, o indivíduo é moldado pela sociedade, portanto cada um reagirá de acordo com a forma que foi socializado. É notável no filme como as crianças repudiam a educação militar quando cantam uma música que refuta as práticas militares e quando temem que o militar ferido se recupere, de forma que sugerem tratar o adulto com rigidez, assim como eram tratados. Ainda de acordo com Durkheim, há uma separação do ser individual e do ser social, sendo a educação proveniente de diversas instituições (inclusive do estado, formando indivíduos também voltados à sociedade), assim podemos compreender melhor um ponto fundamental do filme.

Dado que o processo de socialização começa muito cedo, e age continuamente sobre os indivíduos, vemos no filme indicações de práticas sociais presentes em todas as sociedades, como as histórias contadas em roda como uma forma de transmissão de conhecimento, jogos e brincadeiras auxiliando no aprendizado, ou rituais de pintura do corpo e utilização de adereços corporais para diferenciação do grupo. Aos poucos notamos também a presença de elementos individuais, como a preocupação de Ralph (Balthazar Getty) com os demais – por vezes impondo rigidez ao comportamento dos outros –; já Piggy é extremamente centrado, mais humano e racional, que provavelmente são características da educação familiar, e o garoto não rompe com as instituições que lhe foram apresentadas na infância, pois quer até construir um relógio (objeto que não tira do pulso); Jack (Chris Furrh) simboliza muitos daqueles que querem se divertir, sem tanto compromisso com os deveres, empurrando os mesmos até que a situação torne-se insustentável.

Passada a euforia da anomia os garotos concordaram que precisavam de regras, mas, como em toda a história da humanidade, é difícil – se não impossível – um consenso sobre as leis, de forma que a fratria foi inevitável entre as crianças. Os dois grupos chegam a lembrar Esparta e Atenas, pois os liderados por Rlph eram baseados na Razão, defendiam a assembleia e buscavam consenso para o bem comum, semelhante a Atenas. Já os liderados por Jack eram baseados na caça e treinavam como guerreiros, impunham a lei através do medo ou compravam apoio com a carne caçada. Esta prática de oferecer benefícios aos derrotados lembra a forma imperialista de dominação oferecendo o produto final e omitindo os meio através dos quais os bens foram obtidos.

O grupo de Jack reflete a síntese entre a educação obtida no colégio militar, impondo a força e dominando o inimigo, e a instituição familiar, que é comprovado quando um dos garotos conta que o líder foi para o colégio militar por ter roubado um carro. Já o grupo de Ralph também tem características militares como a disciplina e a obediência frente uma hierarquia, porém quando a maioria é seduzida pela força do outro grupo sobram os que aparentam ter uma referência familiar mais forte e coesa, como notamos em Simon (James Badge Dale), que demonstra afeto arrumando um animal de estimação – diferente dos caçadores que buscam suas presas.

Muitos comportamentos das crianças são condizentes com suas idades, afinal eles brincam, jogam, brigam e por vezes cedem à pressão do que estão vivendo. A cena em que o óculos de Piggy é quebrado deixa claro o quanto o diretor quis explicitar a infância, pois o garoto chora copiosamente e baba feito uma criança de colo. Outro comportamento da infância é a necessidade de transgredir o direito do outro. Assim, quando uma criança quer um brinquedo que não lhe pertence, a tendência é que ela use a força, até que algum adulto intervenha para sua socialização. Na ilha, como não há instituições que reprovem o uso da força, é válido a vontade amparada pelo poder da força.

Os líderes dos grupos são os dois mais velhos, entrando na puberdade, ou seja, pela socialização que tiveram até então essa é a idade em que os meninos têm a necessidade de dominar o meio em que vivem e se impor diante dos demais. Esse comportamento foi encarado como natural do ser humano, até que os estudos da antropóloga Margaret Mead mostraram que em algumas tribos os homens não exercem dominação sequer na adolescência e as mulheres podem dominar a tribo. O desdobramento do filme é uma hipótese plausível. Mesmo sem revelar detalhes, é possível ressaltar aqui um mesmo fato executado de três maneiras diferente, acidental, praticado na emoção de uma ação social e uma atitude extrema da falta de mecanismos de socialização.

É um filme muito bom para ser trabalhado em escolas, inspirando debates e elucidando a importância da socialização, talvez na contramão da individualização da sociedade. Aos que gostam, há um episódio dos Simpsons inspirado no filme, evidentemente que com muito humor e bem distante da tensão de muitas partes da obra original. O episódio é intitulado “O ônibus” e foi exibido na nona temporada.


Um comentário:

Anônimo disse...

Justamente hoje eu me levantei pensando em usar O Senhor das Moscas como base para ensinar Durkheim e me deparo com sua análise. Muito agradecido.

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