quinta-feira, 16 de junho de 2011

Estrada Real da Cachaça

Cachaça, peço o favor que não me aborreça.
Desça para a barriga, mas não suba para a cabeça.


O road-movie de Pedro Urano percorre o interior do Brasil, principalmente de Minas Gerais, para contar algumas histórias e mostrar como a cachaça se tornou a bebida típica do país, marcando presença ao longo de todos os ciclos econômicos desde o descobrimento, com produção rudimentar, até hoje, com algumas marcas valiosas.

Tendo sua origem e predileção entre os populares, a bebida sempre teve a fama de estar à margem da sociedade, com uma imagem até pejorativa, mas como podemos ver no documentário, seu consumo vai além de alcoólatras incorrigíveis e sua história pode ajudar a compreender até mesmo a estrutura de poder da sociedade brasileira, tanto pelas classes que mais a consomem, quando pelas que mais a marginalizam.

Muito barata e acessível, a bebida forte sempre serviu de combustível para trabalhadores explorados, sendo bastante eficiente nesse sentido. Os escravos utilizaram seus benefícios no ciclo da cana e na mineração, após a abolição da escravatura os trabalhadores semi-escravos continuaram a consumir a cachaça para espantar o frio das manhãs, as dores – do corpo e da alma –, o cansaço e, talvez principalmente, o desânimo da vida explorada que se resume na rotina de ir diariamente da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Serve também de companhia para os viajantes, que precisam passar longos períodos longe de casa e da família. Um trabalhador que bebe cotidianamente nunca foi bem visto pela sociedade, e de fato o consumo excessivo da bebida tem efeitos devastadores, mas a marginalização do consumo não tem base na preocupação com o indivíduo e sim com sua força de trabalho, que irá baixar quando estiver alcoolizado, reduzindo assim o lucro do empregador que o explora. Desta forma é mais barato denegrir a imagem daqueles que consomem a cachaça do que evitar os motivos que levam os trabalhadores ao alcoolismo.

Como qualquer produto que cria raízes na cultura de uma sociedade, a cachaça não tem apenas seu aspecto prático, tendo se espalhado pelos hábitos de seus consumidores, o que também gerou preconceito de muitos. A igreja católica, que desde seu surgimento não mede esforços para barrar qualquer outra crença religiosa, sempre se empenhou em suprimir o Candomblé trazido pelos escravos utilizando técnicas bem distantes de seus próprios dogmas. De agressões aos adeptos às associações mentirosas dos elementos sagrados do Candomblé com o demônio dos católicos, a igreja viu na cachaça – utilizada em alguns rituais da religião africana – uma forma de tentar desmoralizar o culto aos Orixás. O curioso é que a miscigenação que ocorre em praticamente todos os sentidos na sociedade brasileira se estendeu às religiões, sendo que ao invés de enfraquecer o Candomblé, o catolicismo agora tem que aceitar alguns de seus adeptos utilizando a temida bebida em alguns ritos. O filme não tem a intenção de entrar em qualquer polêmica religiosa, ou mesmo de criticar a igreja, mas evidentemente não é muito coerente criticar o uso da cachaça enquanto se associa o vinho ao sangue de um profeta – isso sim, só é tolerável depois de consumir muito álcool.

O humor está presente em várias partes do filme, o que é quase inevitável diante da forma com que a bebida é conhecida, associada à descontração e ao modo descomprometido de viver. As sequências que deixam mais evidente o lado cômico são as que trazem as pessoas mais simples apresentando versos antes de virarem suas doses, o que contribui também para compreender como essas pessoas veem o produto. É possível notar que existe plena consciência de que a bebida é prejudicial e que pode aprisionar quem abusa de seu consumo, porém diante das situações apresentadas, ou seja, o consumo em botecos de pequenas vilas ou propriedades rurais, podemos questionar qual a alternativa oferecida em troca do alcoolismo, já que aos que bebem moderadamente, mantendo o controle frente à bebida, são oferecidas condições de vida bem semelhantes aos alcoólatras, que sempre são discriminados, mas raramente tratados e muitas vezes preferem abrir mão da saúde para não ter que encarar “a seco” a dura realidade.

O diretor perde um pouco o ritmo ao dar muita ênfase à forma como os mineradores trabalham atualmente, extraindo e vendendo suas pedras, pois apesar do tema estar relacionado com o cerne do documentário, visto que o trabalho pesado dos mineradores é muito seduzível pelos prazeres da cachaça, a sequência acabou fora de contexto, no entanto isso não compromete a qualidade do longa, sendo que as imagens envelhecidas em preto e branco, para resgatas a origem antiga das tais estradas reais, surpreendem positivamente, chamando mais a atenção do que os pontos negativos.

O filme é uma viagem muito prazerosa pela história da bebida que, apesar de sempre à margem, acompanha a história do Brasil bem de perto. Uma ótima opção, tanto para divertimento quanto para informação.


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