sexta-feira, 27 de maio de 2011

Quanto vale ou é por quilo?

O diretor Sergio Bianchi tomou o conto “pai contra mãe”, de Machado de Assis, como ponto de partida para seu filme. A obra original gira em torno de uma escrava fugitiva que é capturada por um capitão-do-mato (negros que, para salvar a própria pele, trabalhavam para os senhores evitando fugas). A partir disso o roteiro desenvolve mais que um filme de época, pois faz um paralelo entre a escravidão institucionalizada, descrita por Machado, e a atual condição da população explorada no Brasil – em sua maioria formada por negros.

Do ponto de vista da literatura, podemos ver o quanto a obra do escritor infelizmente permanece atual. É possível identificar o poder atuando de forma capilar e onipresente, conforme foi muito bem teorizado por Michel Foucault em “Vigiar e punir”; a parcialidade no cumprimento das leis em favor dos mais ricos; e as origens do ranço asqueroso do racismo, que permeia nossa sociedade e atua diariamente, variando apenas sua intensidade.

Hoje, fora das telas de cinema e das páginas dos livros, conforme ações que visam à equidade social sofrem com o ataque retrógrado dos que defendem direitos supostamente iguais – alegando que cotas, leis e incentivos raciais e sociais iriam ferir o a premissa da igualdade – seus defensores costumam alegar uma dívida histórica contra a população negra e indígena, porém este é o grande equívoco, já que não há dívida histórica nenhuma. Só poderíamos alegar dívida histórica se seu conteúdo estivesse relegado aos tempos de escravidão legalizada, porém o preconceito que impede a camada mais pobre – não necessariamente negros – de ascender economicamente é extremamente atuante e está tão enraizado na sociedade que seus efeitos tendem a ser atenuados até por quem o sente na pele. Este é um dos grandes destaques de Quanto vale ou é por quilo?.

Ninguém nega a barbárie de um sistema equivalente a um holocausto de quatro séculos, mas assumir simplesmente deixaria brechas para que os subjugados reivindicassem direitos verdadeiramente iguais, a partir daí moldam-se os argumentos das formas mais tragicômicas possíveis, como alegar que os próprios negros africanos escravizavam tribos rivais, o que tiraria a barbárie das mãos dos exploradores, não fosse o fato dessa escravização não ter sido espontânea, mas forçada sob a ameaça de extermínio caso a captura não fosse feita pela tribo em questão. Desconsiderando ainda que uma pessoa utilizar escravos, ainda que não tenha capturado o indivíduo em sua terra natal, não diminui a responsabilidade de quem escraviza.

Um recurso do cinema muito bem explorado é a construção da imagem, para destacar o que nossa memória heterodirigida tende a atenuar. Quando queremos suavizar alguma lembrança ou fato, o cérebro irá inconscientemente construir uma imagem mais tênue, ou seja, imaginam-se negros presos, acorrentados pelos pescoços ou atados a troncos, mas para tentar diminuir o terror de uma atitude tão vil não imaginamos o desespero causado pela privação dos movimentos, o sangue que escorria das feridas causadas pelas pesadas peças de ferro e outros detalhes, ressaltados no filme quando a trama se desenvolve no século XIX.

Transpondo o enredo aos dias atuais as cenas são menos agressivas, afinal a violência que atua sobre a população oprimida hoje é mais simbólica, ainda que não menos nociva. O sentimento falso de superioridade continua fornecendo base para abusos, com a diferença que hoje é necessário encontrar brechas na lei – nada muito difícil, visto que estas são formuladas pelos opressores.

O desvio de verbas de doações, como apresentado no filme, permite que empresas enriqueçam às custas do governo, ou seja, dos impostos pagos pela população, e ainda agreguem valor à sua marca com suposta responsabilidade social. O poder exercido pelos mais poderosos, que se aproveitam do conhecimento negado aos explorados, permite a utilização de “laranjas” para golpes que sequer são notados pelos donos das contas. A comparação direta da condição atual de negros com o período legalmente escravista. Esses e outros exemplos do filme culminam na reação extrema, que é praticamente a única, pois se a única alternativa a política é a guerra, a alternativa a uma política igualitária entre classes, sempre negada pelos poderosos, é a violência direta, que é condenável, mas bastante compreensível.

Quanto vale ou é por quilo? mostra que a exploração continua manchando nossa sociedade, que quando muito aboliu a legalidade dos castigos físicos arbitrários, desta forma não é por acaso que a violência – tanto entre classes distintas, quanto entre as classes mais baixas, que precisam salvar a própria pele – continua desenfreada. A simples repressão às classes mais baixas vem sendo aplicada há séculos sem sucesso, talvez a equidade social seja uma alternativa que vale a pena testar.


quarta-feira, 18 de maio de 2011

Viajo porque preciso, volto porque te amo

Neste longa o cearense Karin Aïnouz grava seu road-movie por estradas do nordeste. Talvez um dos motivos do filme ter tido grande repercussão nos festivais internacionais foi o cenário pouco convencional, pois os caminhos percorridos não passam por pontos turísticos ou pelas paisagens deslumbrantes que a região possui, mas pela terra seca, árida e esquecida, por onde espalham-se pequenos vilarejos cujas carências são ilimitadas e os estrangeiros pouco conhecem.

No Brasil o filme também teve grande sucesso, mas também foram muitas as críticas repetitivas sobre a temática supostamente esgotada das mazelas do nordeste. Tais críticas são infundadas, não só pela temática do filme ser diversificada ao invés de restrita aos problemas, mas também pelo fato de que nenhuma denúncia em relação ao descaso com a população local surtiu efeito. É possível afirmar que em se tratando de problemas sociais, o tema só está saturado após a resolução definitiva do problema.

A característica fundamental que o torna bastante particular entre as obras de estilo road-movie é a ausência de personagens, pois até mesmo o protagonista restringe-se a narrativa de José Renato (Irandhir Santos) que apresenta sua viagem de um mês a trabalho, geralmente em tom de relato para sua “galega”. Retomando a tradição da literatura modernista de guiar a obra através de um funcionário público, o geólogo fornece alguns aspectos técnicos do seu trabalho, que visa a análise do solo para a construção de um canal hidrográfico, e apesar de não citar nominalmente, a referência é a transposição do rio São Francisco. Pensando na relação entre estado e população, é curioso ver a disparidade entre o poder das classes mais altas, que em uma cidade como São Paulo têm o poder de influenciar os locais onde devem ou não ser construídas estações de metrô, e a impotência de cidadãos em condições sub-humanas, que são enxotados de uma situação já precária para que a terra em que vivem seja inundada em nome de um suposto progresso, que, conforme a história nos indica, beneficiará apenas grandes fazendeiros.

O cenário encontrado por José Renato é degradado e os moradores retratados vivem em meio ao nada. É possível que a construção de um canal conforme o sugerido traga algum benefício ao local, afinal não é difícil beneficiar uma população tão sofrida, porém as demandas por escolas, hospitais, lazer, ou seja, atenção e cidadania são latentes e não podem esperar até que uma obra faraônica seja concluída para, talvez, serem sanadas. É evidente que uma população sem opções de cultura buscará alternativas ao invés de conformar-se com o descaso, e as opções costumam restringir-se ao bar, à prostituição na beira da estrada com profissionais degradadas e, para finalmente ter um pouco de arte, ao velho circo que se esforça para seguir com as apresentações. A passividade diante dos problemas é indicada quando o personagem começa a elaborar uma crítica, mas rapidamente conclui dizendo que não está lá para isso e sim para a conclusão do relatório sobre o solo.

Outro viés do filme faz referência à segunda parte do título, pois ao viajar pela necessidade do trabalho o protagonista conta, desde o início, os dias e as horas para rever sua amada. O que surpreende, e desencanta os mais românticos, é que apesar do título bastante chamativo, um dos fatores que mais incentivou a viagem de José Renato foi o fim do relacionamento – que é revelado rapidamente, portanto não é nenhuma grande surpresa – que força o protagonista a se afastar do problema na tentativa, frustrada, de esquecê-lo. A ficção do funcionário público que, como tanta gente, busca na viagem a simbologia de afastar-se de um problema na ilusão de esquecê-lo e na esperança de que tudo esteja resolvido na volta, é mesclada com a realidade do depoimento de alguns moradores, revelando a solidão que gera uma angústia até inconsciente.

Aquele que no início conta as horas para voltar e relata o serviço adiantado, com o tempo desanima, atrasa e bate de frente com a falta de opção. A viagem torna-se chata, cansativa, repetitiva em um cenário que independente da quilometragem percorrida é sempre o mesmo; mas qual a alternativa, se voltar implica em encarar a dor do relacionamento interrompido? Em um dilema bastante parecido estão os moradores entrevistados, pois assim como o personagem, eles relatam uma vida dura, a esperança de melhora, mas no contexto em que estão inseridos fica a mesma dúvida, qual a alternativa para sair de uma condição tão hermética, que reduz a pluralidade humana a um destino quase pré-estabelecido?

A morosidade indicada pelos que não estão habituados ao dito “cinema de arte” é compreensível, até pela estrutura do filme fugir muito ao habitual, mas uma das técnicas de montagem do cinema é adequar o ritmo da obra para que fique condizente ao vivido pelos personagens, assim, acompanhando um pouco da viagem de José Renato, vemos que o filme não poderia ser diferente.


sexta-feira, 6 de maio de 2011

Cópia Fiel (Copie Conforme)

Cinema iraniano é visto no Brasil quase como um signo de filmes chatos e mal produzidos, o que é compreensível em se tratando de produções carentes de tradição e recursos e, sobretudo, com uma cultura bem diferente da ocidental, que aborda temas alternativos com uma concepção de tempo bem diversa. Aqui o diretor Abbas Kiarostami rompe as fronteiras de seu país e apresenta essa produção franco-italiana, que mescla cinema europeu com as fortes influências do diretor iraniano.

O filme é mais lento do que em geral costumamos ver, alguns pontos ganham mais ênfase que o necessário e o enredo é bastante linear, o que costuma desagradar muitos espectadores. Já os planos externos filmados na Toscana, que mais parece um cenário a céu aberto, agradam até os olhares mais desatentos. É em meio aos cenários românticos e inspiradores que Elle (Juliette Binoche) e James Miller (William Shimell) passam a maior parte do filme travando grandes discussões por sustentarem pontos de vistas divergentes em cada detalhe.

James é crítico de arte e foi para a Itália para o lançamento de seu novo livro, Cópia Fiel, no qual defende basicamente que algumas cópias de obras de arte podem ter tanto valor quanto a original. Só este tema já possibilita diversas análises e debates entre artistas, críticos e apreciadores, porém o foco do filme não está em chegar a uma conclusão sobre o valor da cópia de uma obra, mas utilizar essa ideia e as divergências das personagens acerca dela como metáfora para as relações diversas entre as pessoas. Elle é uma personagem mais complexa, pois a comerciante de arte, sempre em busca do original, apesar de fazer de tudo para se aproximar do crítico e agradá-lo, tenta convencê-lo de que sua tese é equivocada. A divergência somada a algumas atitudes nos leva a acreditar que o interesse dela é mais pessoal que profissional. Com a metáfora estruturada – e extremamente desenvolvida na primeira parte do filme – o roteiro começa a fazer um jogo de verdade e ficção muito instigante.

A partir do momento em que são confundidos com um casal em um café passam a agir como casados. Seria uma união verdadeira ou uma cópia? As discussões, até então mais técnicas e voltada para obras de arte, cujo valor é muito subjetivo, passam a ter como tema as divergências de um casamento que já dura quinze anos. Em sua busca pelo significado da vida James acredita ser este a diversão, não importa se através de cópia, desde que esta desperte emoções. A obsessão de Elle pelos originais não é restrita às obras, mas chega aos sentimentos e insiste em impor sempre com muita seriedade seus valores, que para ela são inegavelmente corretos.

Os dois pontos de vista sobre os temas debatidos pelo casal são válidos e bem argumentados, sendo que dificilmente aquele relacionamento poderia ser mantido com harmonia por muito tempo, não por um dos dois estar errado, mas pela divergência latente em relação ao modo como devemos levar a vida. James adota uma postura mais individualist, portanto o relacionamento seria mais distante, sem o compartilhamento total de alegrias e problemas; proposta interessante, desde que para mantê-la durante o casamento as responsabilidades, como a criação dos filhos, não sejam empurradas integralmente para a esposa. Já Elle exige maior comprometimento, exaspera o romantismo e sente falta de mais atenção do companheiro; proposta interessante, não fosse a imposição de comportamento e de sentimentos por parte da personagem, quase como se tudo que é diferente dela não tivesse valor, tal qual uma cópia da obra de arte original, segundo sua concepção.

Diferente do cinema ocidental, com enredo fechado e conclusões prontas, Kiarostami apresenta um diálogo bastante linear, mas que não oferece um final fechado e que suscita a reflexão. Os dois formam um casal ou uma cópia fiel? O que caracteriza um casal original? O que caracteriza um sentimento original? Em geral, costumamos colocar nossos sentimentos e nossas expectativas como originais e corretos, mas lidamos muito mal com as situações em que se invertem os vilões e heróis.

Sem trailer legendado  =/

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