quarta-feira, 6 de abril de 2011

Olhos Azuis

Com este filme o diretor José Joffily aborda um aspecto da imigração nos EUA. Não trata de ilegais que tentam cruzar o deserto e começar vida nova, mas de pessoas que tentam entrar legalmente, para trabalhos temporários, estudo ou turismo, porém devem passar por um verdadeiro pente fino, sob critérios bastante questionáveis.

No filme Marshall (David Rasche) é um oficial da imigração no aeroporto e está em seu último dia de trabalho antes da aposentadoria. A data especial mereceu uma comemoração regada a doses de uísque ao longo do dia, mas apesar disso o oficial prezava em seus discursos pela ordem e pelo cumprimento da lei. Já Nonato (Irandhir Santos) é o brasileiro que mora legalmente nos EUA e após um breve retorno ao Brasil, para visitar a filha, tem que enfrentar os amplos questionários aplicados aleatoriamente aos imigrantes oriundos de países subdesenvolvidos.

O foco do filme é mesmo os critérios – ou a falta deles – aplicados a quem desembarca, ainda que legalmente, nos Estados Unidos, mas o desenrolar do enredo abre espaço para uma análise sobre as relações de poder, baseadas no preconceito de quem o detém. Em uma escala global podemos ver um policial norte americano, que no alto de sua arrogância considera-se melhor que os imigrantes simplesmente por ter nascido em um país rico, desconsiderando também as origens desta riqueza. Reduzindo a escala e invertendo a polaridade do norte rico e sul pobre, vemos cotidianamente (e de forma muito mais intensa logo após as últimas eleições para a presidência) a mesma postura lamentavelmente preconceituosa dentro do Brasil, do sul e sudeste em relação ao norte e nordeste. Seria possível citar várias outras magnitudes em que o mesmo conteúdo preconceituoso se revela.

O próprio título da obra pode causar desconforto. Olhos azuis. Os olhos azuis de Marshall, que por vezes lacrimejam tanto pelo remorso que o assola em uma das partes do filme, quanto pela dor física provocada por um tumor, diante do qual não há ricos ou pobres. É evidente que a cor dos olhos em nada influencia no caráter de um indivíduo, assim como a cor de sua pele ou qualquer característica física, mas a metáfora que associa os olhos azuis à qualquer situação tradicionalmente é aplicada para coisas boas. Quando os olhos azuis são associados ao preconceito de Marshall contra latinos não nos incomodamos tanto, afinal temos a tendência de tomar partido do brasileiro, porém quando o ex-presidente Lula associa a culpa de uma crise econômica à gente loira e de olhos azuis, não faltam críticas acompanhadas de argumentos muitas vezes risíveis. Seria até plausível se os que bradaram contra Lula focassem a falsa associação de um estereótipo com uma atitude, mas a metáfora foi claramente associada aos países ricos e a indignação se deu por dois motivos, primeiramente porque seu conteúdo era irrefutável, pois a crise foi mesmo iniciada por gente rica que precisou mendigar ajuda milionária do governo. Depois porque o alvo da crítica foi uma classe social que há séculos utiliza outra metáfora pejorativa: “isso é coisa de preto”.

É curioso como quando as classes mais altas são contra atacadas, defendem-se com discursos baseados na liberdade de expressão, igualdade, diversidade de ideias, etc. Tudo muito bonito, por serem pontos verdadeiramente indispensáveis em uma sociedade, não fosse o fato de que na prática esses valores são encontrados unilateralmente, de forma que as classes economicamente superiores reivindicam o direito a atacar e expor claramente seu poder aos demais, porém estes não podem sequer ousar o contrário.

Recentemente encontramos um Marshall brasileiro, o deputado Jair Bolsonaro, que depois de declarações racistas e homofóbicas despertou a ira de muitos, mas também conquistou grandes fãs. Nas diferentes esferas em que a relação poder x preconceito se apresenta, muitos podem, até mesmo sem perceber, reproduzir o discurso imperialista, que após reprimir determinadas classes sociais durante muito tempo ainda colocam nos oprimidos a culpa de suas mazelas.

Não é difícil criticar Marshall diante das acusações absurdas, principalmente quando são dirigidas a um brasileiro, mas o mais importante é perceber que o mesmo discurso apresentado no filme pode ser reproduzido de várias formas e em várias esferas de poder.


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