segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Lixo Extraordinário (Waste Land)

Os trabalhos habituais de Vik Muniz, fotografando mosaicos gigantes montados com lixo para formar imagens muitas vezes consagradas, rodam o mundo e encantam pela originalidade, beleza e capacidade de prender o olhar por tempo indeterminado. É possível passar horas observando a mesma tela e desvendando nuances, tanto ao observarmos de longe, quanto ao chegarmos perto para ver que tudo é formado por materiais descartados, desde pequenas tampas de garrafas até geladeiras e pneus.

Em linhas gerais era essa a ideia que eu tinha sobre a obra do artista e quando fui ver o documentário, dirigido pela britânica Lucy Walker, em parceria com João Jardim e Karen Harley, esperava algo como um making of da montagem das obras, mas Lixo Extraordinário vai além e não mostra apenas a transformação de materiais descartados em uma obra de arte, mostra também a transformação do artista ao longo do trabalho, dos catadores que ganham a vida no aterro do Jardim Gramacho e inevitavelmente provoca mudanças profundas em quem assiste o documentário.

Como plano de fundo é possível ver a produção das obras de Vik Muniz, mas o que surpreende, choca e comove é a apresentação das pessoas que trabalham no maior aterro sanitário do mundo. A princípio temos a confirmação de uma imagem pré-concebida, baseada na falta de conhecimento, de que o lixão é uma área isolada composta por uma massa uniforme de material inutilizado, onde ratos, urubus e porcos disputam espaço com seres humanos, que também costumamos uniformizar como pessoas sem qualificação, a margem da sociedade. O preconceito é desfeito sem muitas dificuldades.

Tião é o presidente da ACAMJG (Associação de Catadores do Jardim Gramacho) e com sua simpatia nos conta um pouco sobre sua vida e apresenta alguns outros trabalhadores retratados no filme. Aos poucos vemos quanta diversidade cerca o local, com divisão clara das tarefas em todas as etapas da coleta e a personalidade marcante dos trabalhadores. Aproveitando o gosto pelos estudos Tião, assim como seu amigo Zumbi, recolhe livros encontrados no lixo e guarda para formar uma biblioteca; assim já leu Maquiavel, Nietsche, Schopenhauer, etc. Algumas querem deixar o aterro, como Isis e Magna, porém sabem da importância do trabalho e não se envergonham do que fazem, enfim, o que une os catadores como um ponto comum a todos é a consciência de quem são e o que fazem, a clareza dos motivos que os levaram a recolher material reciclável para viver e a necessidade de união para superar as dificuldades vindas de todos os lugares.

Quando vemos tudo o que é considerado pelos catadores para fazer a seleção do material é possível lembrar a cômica teoria da microeconomia, onde supostamente o mercado atingiria sua eficiência máxima livremente. A demanda maior de certos materiais faz com que o valor aumente no mercado, aumentando também sua procura; não há salário mínimo para os trabalhadores nem impostos sobre o que é coletado, o que supostamente – para a microeconomia – é nocivo ao mercado. A grande diferença entre este mercado e as grandes empresas é que para estas o estado permanece ausente até que uma crise financeira force os cofres públicos a despejarem rios de dinheiro para salvar más administrações, enquanto que aos membros da ACAMJG a participação do estado só é visível quando governantes favorecem grandes empresas de reciclagem em detrimento dos catadores, que recebem centavos da grande fortuna gerada pela reciclagem.

O mercado de bens simbólicos permitiu que as obras de Vik Muniz, retratando os trabalhadores do Jardim Gramacho, arrecadassem dinheiro para a ACAMJG, mas o aterro será fechado em 2012. A princípio seria uma atitude compreensível, já que o local não fornece condições de trabalho, porém nenhuma medida eficaz foi tomada para realocar os trabalhadores que ganham a vida em um local que aceita qualquer pessoa, independente da qualificação ou currículo.

Através de Lixo Extraordinário os trabalhadores do Jardim Gramacho nos comovem e ensinam, não pelo comodismo reducionista de achar que há alguém com trabalho mais pesado e vida mais dura, mas pela clareza que possuem sobre a própria condição e a preocupação constante com dois pontos primordiais para encarar qualquer tarefa: a instrução e a união dos trabalhadores envolvidos. Entrei no cinema para conhecer mais sobre a obra de Vik Muniz e saí com a certeza de que essa é apenas uma parte do que o filme tem a nos oferecer. Impossível ter algum contato com o documentário sem sofrer nenhuma transformação, tal qual o lixo que pode ser transformado em obra de arte.





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