quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O invasor

Essa é uma das tantas obras literárias adaptadas para o cinema. A particularidade é que a adaptação não foi feita após o lançamento do livro, mas com a obra ainda inacabada o roteiro começou a ser adaptado em um trabalho conjunto do autor Marçal Aquino e do diretor Beto Brant. Marçal já havia desistido de concluir seu livro e retomou o trabalho algum tempo depois, de forma que as obras foram concluídas quase simultaneamente. Há uma edição bem interessante do romance seguido do roteiro adaptado, lançado pela editora Geração Editorial.

A estrutura do enredo é bastante semelhante nas duas obras, mudando apenas a ênfase de alguns personagens, mas a diferença fundamental é que no livro a história é narrada em primeira pessoa, pelo protagonista Ivan (no filme Marco Ricca). A mudança da narrativa do filme proporciona o detalhamento de ações fora do olhar do protagonista, e consequentemente a pluralidade de opiniões, ausente no livro.

Como base o enredo conta com o choque entre duas classes que costumam estar separadas por um grande abismo, e os desdobramentos que um encontro em tais circunstâncias pode ter. Dois sócios minoritários – Ivan e Giba (Alexandre Borges) – resolvem se livrar do sócio majoritário Estevão (George Freire), ignorando a amizade desde a faculdade na Escola Politécnica, a família do sócio, e as consequências do crime. Para o assassinato contratam Anísio (Paulo Miklos, em atuação de grande destaque), que encara o serviço com a naturalidade de quem já está habituado às tais práticas.

A angústia de Ivan, que é o único a demonstrar arrependimento e a tentar minimizar a participação no plano, como se consentir um crime fosse menos grave que executá-lo, fica mais evidente no livro, já que como narrador de todos os fatos, somos guiados a interpretar os acontecimentos sob seu próprio ponto de vista. O filme trabalha com a construção da imagem para indicar o perfil dos personagens sem o aprofundamento que a narrativa escrita proporciona, de forma que são visíveis os estereótipos de classe média/alta, a periferia através da zona leste de São Paulo, o escritório da construtora dos sócios, etc.

Esses estereótipos e seus conflitos abrem espaço para uma análise sobre os campos de possibilidades de cada personagem do enredo, pois ao contrário do que esperavam os mandantes do crime, a vida não seguiu seu ritmo normal, já que Anísio não estava disposto a se contentar com o preço cobrado pelo assassinato e tornou-se uma sombra na vida dos mandantes do crime, ocultando no escuro a origem de sua influência sobre os sócios.

Qualquer relação entre um assassino e os mandantes do crime é marcada por um pacto velado de silêncio, sem o qual é praticamente impossível que apenas um dos lados seja descoberto, porém ao pensarmos nos campos de possibilidades, descritos por Pierre Bourdieu, é inegável que caso o crime venha à tona e os envolvidos sejam presos, o mandante do crime tem mais a perder. Mantendo a análise sobre o caso específico do filme, o autor mostra que a falta de escrúpulos é a mesma, tanto para um matador profissional, cujas atitudes costumam ser explicadas pelas faltas de oportunidades ao longo da vida, quanto para dois engenheiros, donos de uma construtora, com muitas oportunidades, mas que agem em prol do lucro pessoal. Desta forma a grande diferença está nas hipóteses plausíveis de acordo com o estilo de vida de cada personagem, ainda que a justiça seja, em tese, igual para todos.

Para qualquer pessoa que ganha a vida com atividades ilegais a prisão é evidentemente uma possibilidade muito mais plausível do que, neste caso, para empresários com nível superior que até então, aparentemente, mantinham suas vidas dentro da lei. Esta ideia fica clara em uma fala de Ivan, que insiste no fato de que é uma boa pessoa que cometeu um deslize, diferente de Anísio que descreve uma execução com a naturalidade de quem pratica qualquer ação cotidiana.

O impacto que o filme causa em quem assiste vem exatamente por mostrar de forma crua e direta (mesmo com as várias formas de violência sempre implícitas e nunca escancaradas) que estruturalmente os personagens são muito parecidos, e seus detalhes variam, para manter a base da análise em Bourdieu, de acordo com o capital cultural e social de cada um. A dúvida pertinente, e talvez assustadora, que fica é se vemos apenas uma ficção narrada em um filme, ou a crueldade de algumas ações está mais perto do que imaginamos.


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