quarta-feira, 20 de maio de 2009

Mulher Invisível

Estreia em junho o longa “Mulher Invisível” de Claudio Torres. Vi a pré estreia essa semana e o roteiro não me surpreendeu. Como podemos perceber pelo trailer, o filme não traz grandes questionamentos ou temas profundos, mas cumpre muito bem seu objetivo, que é arrancar boas risadas da plateia. A surpresa fica por conta da qualidade do trabalho final com a trilha sonora muito bem encaixada; a ótima direção de fotografia, que faz alguns cenários praticamente falarem com o público; e o estereótipo muito bem representado de certos personagens, nos passando a essência da classe retratada – como a vizinha que escuta os segredos do apartamento ao lado, a irmã conselheira, etc.
O filme mostra o potencial do cinema brasileiro, cujos profissionais dotados de competência precisam apenas de condições para realizar e divulgar seus trabalhos para que estes não fiquem devendo em nada às produções estrangeiras. Claro que respeitando os padrões orçamentários de uma economia bem diferente das grandes potências mundiais, os filmes nacionais contam com talento de seus profissionais para mostrar seu valor com os recursos disponíveis.
Em relação ao talento cabe atenção especial à atuação de Selton Melo, que faz o protagonista Pedro Albuquerque, controlador de transito que após o súbito abandono pela esposa passa por uma fase conturbada, até encontrar Amanda (Luana Piovani) a mulher perfeita, não fosse o fato dela só existir em seu pensamento. As cenas em que Selton atua sozinho, como se houvesse de fato uma pessoa real em sua frente, mostra que seu trabalho está a altura de Jim Carrey em “Eu, eu mesmo e Irene”. Estas cenas, juntamente com as que o personagem mostra-se extremamente confuso com a situação inacreditável pela qual passa, fazem a diversão do público que conta com uma comédia simples e muito bem produzida.
Com um público alvo bem abrangente por não focar nenhum grupo específico – basta que a pessoa goste de comédias sem grandes pretensões – o filme tem tudo para ganhar destaque no cenário nacional. A abordagem caricata de cenas do cotidiano agrada pela verossimilhança, pois excetuando a mulher imaginária, o enredo traz, de forma hiperbólica, situações como a separação conjugal, a adaptação da vida após o abandono, tentativas de conquistas amorosas e a relação entre desconhecidos que pode acontecer desde a forma mais tranquila e pacífica, até a mais complexa e conflituosa.
Fica implícito no filme que ao nos reconhecermos em certas cenas corroboramos a forte influência da cultura romântica na vida moderna. Ao encararmos o enredo como situações cotidianas de forma caricatural assumimos que necessitamos de um relacionamento, quase tanto quanto Pedro Albuquerque ou sua vizinha Vitória (Maria Manoella); e em certas horas nos bate o medo de que uma vida descompromissada resulte em uma velhice solitária, tal qual o medo de Carlos (Vladmir Brichta), ainda que a maioria de nós negue esse sentimento com veemência.
Fica aqui esta dica de boa diversão para o próximo fim de semana no cinema!


quarta-feira, 13 de maio de 2009

Simonal – ninguém sabe o duro que dei



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Chega às telas de cinema o filme “Simonal – ninguém sabe o duro que dei”, sobre um dos maiores cantores que nosso país já revelou e que protagoniza uma das histórias mais curiosas envolvendo a ditadura militar.

De origem muito humilde, filho de empregada doméstica, Simonal era dono de uma voz que bastaria para lhe dar projeção nacional após ter cumprido o serviço militar obrigatório. Mas, além disso, o carisma inigualável com que contava para manter toda a plateia em suas mãos fez de Simonal um ídolo nacional, tendo feito diversas apresentações no exterior nas décadas de 60 e 70. Em seus shows regia o público tal qual um maestro frente a uma orquestra chegando a ter, em show no Maracanãzinho, mais notoriedade que Sergio Mendes, logo após este ganhar o Grammy.

Ao contrário das expectativas criadas para quem atinge tamanho sucesso, Simonal morreu aos 62 anos de cirrose hepática, pobre, esquecido pela mídia e por boa parte dos amigos. O dono da bela voz não chega a ser um caso único neste sentido, afinal não faltam exemplos de artistas ou esportistas consagrados que encerram a vida no anonimato, muitas vezes passando necessidades. Aqui cabe uma das conclusões notáveis que podemos tirar pensando no enredo, juntamente com a história do Brasil.

Em um país que não prioriza a educação de seu povo, são frequentes os casos de pessoas que, famosas ou não, encontram dificuldades para administrar a carreira e muitas vezes passam de uma condição de vida confortável para sérias dificuldades, não ganhando o suficiente para sanar as necessidades mais básicas. Essa é uma das faces de um sistema educacional que, para dizer o mínimo, beira a falência.

Outro ponto bastante comum nas carreiras de grande sucesso, talvez com predominância entre artistas com formação precária, são os conflitos com empresários. Geralmente artistas alegam exploração por parte de empresários, que por sua vez alegam terem sido demitidos injustamente após colocarem os artistas no topo. No caso de Simonal todos esses elementos estavam presentes, portanto até aqui sua história tem poucos elementos novos.

A particularidade do caso começa ao cruzar o caminho da ditadura militar que utilizava um falso escudo de progresso econômico – no qual não podemos acreditar, pois pagaremos as dívidas econômicas da ditadura eternamente – para perseguir politicamente cidadãos que muitas vezes sequer tinham vínculo com a política. Fatos ocorridos durante a ditadura militar costumam ser obscuros, com várias versões e pouca documentação e a história de Simonal não é diferente, de modo que no documentário vemos diversas versões divergentes, diante das quais não é possível chegar a uma conclusão exata de quem está com a razão ou qual versão é falsa. O que podemos concluir é que após ter sido acusado de ordenar a tortura de seu ex-empresário, Simonal foi acusado, injustamente durante seu depoimento, de ser alcaguete a serviço dos militares.

No auge da luta pela democracia, na qual a classe artística teve grande destaque, Simonal foi visto como traidor e essa ideia foi estranhamente comprada por toda a mídia, cuja construção de notícias vem de longa data. A partir disso sua carreira entrou em declínio, perdeu contratos e sofreu boicote das casas de shows e veículos de comunicação como um todo. Até a sua morte sua carreira nunca mais foi reconhecida como no passado, mesmo após reunir documentos oficiais isentando a participação em órgãos militares. O cantor passou a enfrentar problemas com a depressão e alcoolismo que o levou a morte no ano 2000. Antes de cairmos na tentação de julgar os que se entregam à bebida, devemos pensar nas condições pelas quais muitas dessas pessoas passam; no caso específico o declínio da carreira, o abandono de pessoas próximas e a súbita mudança no estilo de vida.

Simonal entra para a história como mais um exemplo de um cidadão que fez de tudo para driblar as dificuldades impostas pelo sistema de seu próprio país, e ao chegar no auge de sua carreira foi derrubado por esse mesmo sistema por um conjunto de fatores como a falta de instrução, o preconceito, as armadilhas políticas, etc. A vida de quem, para Luis Carlos Miéle, é o maior cantor da história do Brasil merece nossa atenção, não só como um caso particular, mas também por nos mostrar o quanto nosso país pode ser cruel com seus cidadãos.


quinta-feira, 7 de maio de 2009

FilmeFobia


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FilmeFobia, de Kiko Goifman, estreou em São Paulo em apenas uma sala após receber o prêmio de melhor filme no 41º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Mais uma vez temos pouca atenção voltada a um trabalho nacional que não é uma obra prima do cinema brasileiro, mas chama a atenção pela inovação e questões um tanto polêmicas. Apesar das dificuldades habituais de levar um filme às salas de cinema e atrair o público, devemos ressaltar o bom trabalho de divulgação que estimulou o público a interagir, mandando fotos pessoais com os flyers do filme e instigando a curiosidade de todos.

Trata-se de um documentário fictício que mescla representações e filmagens de cenas reais mostrando pessoas diante de suas fobias. A ideia do diretor é exatamente causar desconforto em quem assiste e para isso a montagem das cenas é estruturada de forma a sugerir que se trata do making off de um documentário. O diretor fictício é Jean-Claude Bernadet, que faz papel homônimo mostrando debates por trás de um documentário real. São abordadas questões de ética – afinal colocar pessoas diante de seus maiores medos, ainda que com consentimento das mesmas, é sempre polêmico –, dúvidas em relação às filmagens que de fato aparecem no trabalho, sobre o impacto das imagens, a veracidade das reações, a melhor forma de apresentar as filmagens ao público, etc.

Goifman, o diretor real, já esperava pela repercussão do trabalho com diversas interpretações questionáveis. A princípio as duras críticas frustraram o diretor, antes da consagração do Festival de Brasília. Nos EUA muitos deixaram o cinema durante o filme, suas cenas foram vaiadas e acusadas de tortura. Sem querer misturar a opinião da população com uma postura do antigo governo, após as práticas norte-americanas em Guantánamo ao longo do governo de George Bush é curioso esta indignação deles com um filme.

De fato algumas cenas são bastante fortes, pois primeiramente o filme não trata de medo, mas de fobia, um receio mórbido, persistente e incontrolável. Além disso, os fóbicos não são simplesmente expostos ao seu temor, mas amarrados para não poderem fugir e, portanto, forçados a encarar o que abominam. Até aqui o termo tortura parece pertinente, só não podemos esquecer de que todos concordaram em participar, sabiam que seriam amarrados e levados a condições extremas. O próprio diretor participa das filmagens e desmaia algumas vezes ao enfrentar sua fobia de sangue.

Com todas as dificuldades expostas surgem as questões: qual o interesse de filmar alguém nessas condições e, talvez mais intrigante, o que leva alguém a sujeitar-se a isso?

Pois bem, segundo o diretor "a única imagem verdadeira é a de um fóbico diante de sua fobia" e essa ideia é seguida ao longo do filme – que por mesclar realidade com ficção, torna difícil distinguir o que é encenado e o que é real. A afirmação é questionável uma vez que a reação pode sim ser representada por bons atores, principalmente com algumas técnicas teatrais de Stanislaviski, e isso chega a ser admitido ao longo da obra, mas vemos também que quando a fonte de fobia é apresentada ao fóbico, ainda que este tente manter o controle, isso não é feito por muito tempo e logo a pessoa reagirá da forma mais espontânea possível – seja desmaiando, entrando em um estado de histeria ou simplesmente travando, tal qual uma presa diante de um predador. Neste ponto o longa é bem interessante por mostrar as diversas reações, ainda que algumas possam ser encenadas.

E para quem sofre com a fobia podemos supor – e o filme nos ajuda a isso – que há uma explicação plausível a essa exposição ao seu ponto mais fraco. O medo é completamente normal e necessário para qualquer pessoa, mas, como já citado, a abordagem não é o medo, mas a fobia que pode colocar qualquer um em uma situação constrangedora por não ter controle sobre as próprias reações. Vários exemplos são citados na obra desde os mais comuns como cobras, altura e sangue até os mais inusitados como ralos e botões, cuja exibição inevitavelmente gera certo humor àqueles que não têm problemas em abotoar as camisas.

Podemos concluir que certas fobias são facilmente contornáveis e basta que o fóbico mantenha sua distância, mas muitas vezes o pavor diante de situações cotidianas não pode ser simplesmente evitado ou ignorado. Enfrentar o objeto que causa tanta repulsa pode ser uma tentativa de superar traumas que causam limitações, constrangimento e vários outros problemas. Fica aqui a principal crítica ao filme que é a falta de respostas diante das experiências. Não há entrevistas posteriores nem algum outro tipo de exibição do resultado do enfrentamento da fobia pelo fóbico, portanto não sabemos se houve resultado positivo ou se algumas cenas aumentaram a necessidade de terapia.


terça-feira, 5 de maio de 2009

Camelos Também Choram


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O longo texto sobre esse filme é um resumo de um trabalho que fiz para a faculdade. O texto todo tem 12 páginas e tive que fazer vários cortes para não ficar tão grande aqui. Quem tiver interesse no texto completo entre em contato comigo pelo e-mail alexeap@india.com.

O filme Camelos Também Choram é o trabalho de conclusão do curso de cinema do diretor mongol Byambasuren Davaa e do italiano Luigi Falorni. O filme mostra as quatro gerações de uma família de nômades que habitam o deserto de Gobi, na Mongólia, e vivem da criação de camelos e cabras.

A primeira cena do filme mostra Janchiv, patriarca da família, contando uma lenda, segundo a qual os camelos possuíam chifres que lhes foram dados por Deus em recompensa pela sua bondade. Um dia um veado pediu os chifres emprestados para uma celebração o ocidente, entretanto nunca os devolveu e desde então os camelos olham para o horizonte a espera da devolução dos chifres. Esta lenda dá uma ideia de metáfora para o que é desenvolvido ao longo do filme que, além do fio condutor que é o filhote branco rejeitado pela mãe, mostra rituais e costumes dos nômades mongóis; um pouco de seu estilo de vida; e um conflito entre o tradicional e o moderno.

A principal forma utilizada ao longo do filme para evidenciar o conflito é utilizando as crianças que formam a quarta geração da família para questionar certos costumes e mostrar o desejo de novidades. Até a metade do filme todas as cenas são feitas nos arredores da tenda da família e os únicos elementos que mostram influência da modernidade sobre os nômades são um pequeno rádio de pilha, um binóculo e um gorro com o logotipo da marca Adidas utilizado por Ugna. Portanto a primeira metade do filme é focada em evidenciar o estilo de vida da família, mostrar alguns rituais e marcar essa separação entre gerações.

Vemos também na primeira parte do filme o motivo que leva os dois jovens nômades até a cidade, onde têm contato com produtos de um estilo de vida bastante diferente com o qual estão acostumados. É época de nascimento dos filhotes de camelo, percebemos como o conhecimento é passado dos mais velhos para os mais novos em situações cotidianas nas quais pequenos problemas são resolvidos em conjunto pela família e servem como uma forma de instrução dos mais novos pelos mais velhos. O primeiro camelo a nascer demanda, como manda as tradições locais, um ritual especial. Os homens mais velhos cortam um pouco do pelo de um animal adulto e essa lã é trançada em forma de corda por uma das mulheres, o recém nascido é adornado com algumas cordas coloridas e um pouco de leite é sacrificado para que o animal cresça forte e saudável. Esse é um dos rituais da tribo exibido no filme. Além de situações que são solucionadas em conjunto, passando conhecimento aos mais novos, é possível notar como é forte o valor das histórias utilizadas para transmitir a cultura dos nômades às novas gerações. Em determinado ponto Janchiv começa a contar mais uma lenda sobre camelos, associando o animal ao horóscopo, mas é interrompido pelo jovem Ugna que diz já saber a história e pede por alguma novidade.

Diferente do primeiro camelo que nasceu, o último parto do ano ocorreu em meio a complicações. Era a primeira gestação do animal que teve um parto longo e difícil, precisando da ajuda dos humanos para que a fêmea desse a luz a um grande filhote branco. Após o parto o filhote foi rejeitado pela mãe e não faltam motivos para tentarmos compreender o porquê da rejeição. O camelo que nasceu era branco; foi a primeira cria daquela fêmea; e por fim, o filme indica por meio de diálogos que provavelmente a rejeição se deu devido ao o parto ter sido extremamente trabalhoso, sendo que Janchiv teve que intervir até para que o recém nascido começasse a respirar.

No filme o que fica mais evidente no contexto é a aversão ao diferente, ao que é novo e foge do padrão, assim como a relutância por parte dos mais velhos em aceitar uma televisão desejada por Ugna. O aparelho não é visto com bons olhos pelos mais velhos, sobre o qual atribuem a ideia de um demônio e dizem que não é bom passar o tempo todo vendo imagens no vidro.

A família faz grande esforço para tentar aproximar a mãe de sua cria, mas as tentativas são frustradas. O contexto do filme e o modo como as cenas são dispostas nos faz ter realmente a sensação de que o pequeno camelo branco chora diante da rejeição.

Após uma tempestade de areia, em uma sequência que valoriza a fotografia e mostra um pouco dos percalços do local, é mostrado mais um ritual do qual participam todos os membros da família e outros nômades vindos para a realização do rito. Uma das falas indica uma ideia de causa e consequência entre a recente tempestade e o ritual, pois as orações são feitas aos espíritos que deveriam livrar o mundo das doenças e do mau tempo. O ritual é uma espécie de profilaxia contra futuras intempéries. Para o ritual todos utilizam vestimentas típicas.

Além de mostrar uma tradição do povo que vive no deserto mongol, existe na cena uma crítica à sociedade ocidental feita por meio das falas exibidas. O homem que conduz o ritual lembra que “a humanidade saqueia a terra e seus recursos” e que “devemos nos lembrar que não somos a última geração na terra”. Neste documentário a crítica insere-se na clivagem entre ocidente e oriente como mais um fator a ser repudiado e mais um motivo para que os nômades sejam avessos à uma maior aproximação com o ocidente.

Após a tempestade vemos uma cena que une muito bem a tentativa de transmitir hábitos do povo mongol com a história do camelo rejeitado que guia o documentário. Em uma conversa, Janchiv e Amgaa concluem que a única maneira de fazer com que a mãe aceite o filhote é através de um ritual Hoos. Para esse ritual era necessário um bom violinista e não havia nenhum nas proximidades, portanto seria necessário entrar em contato com algum na cidade.

Não há nenhum tipo de comunicação entre a família e outras localidades, desta forma a única maneira de contatar alguém de fora da aldeia é pessoalmente. Para isso a família resolve enviar Dude ao Aimak Center, que parece ser um centro comercial, com lojas, feiras e uma escola de artes. De acordo com a vontade das gerações mais velhas da família Dude deveria seguir sozinho, mas Ugna faz questão de ir junto.

A viagem das crianças dá início a segunda parte do filme, quando os meninos têm contato com novos elementos da civilização que trazem encantamento e surpresa. Na primeira parada, em uma tenda de outra família de nômades, os dois deparam-se com um aparelho de televisão e Ugna parece hipnotizado pelos desenhos animados. Entre as crianças presentes na tenda é possível notar que uma menina veste uma blusa com o logotipo da Nike, uma forma simples e bem direta de mostrar a presença ocidental.

Ao seguir viagem Dude tenta convencer o irmão de que é difícil adquirir uma televisão, já que o aparelho é caro e para funcionar precisa de energia elétrica. No final do filme podemos perceber que esse problema é sanado com placas de energia solar, ou seja, é cada vez mais próxima a presença da modernidade na vida dos nômades. Isso, de acordo com o ponto de vista dos mais velhos, é uma ameaça relativamente perigosa se associarmos com a lenda contada na abertura do filme. Na lenda o veado empresta os chifres, que haviam sido dados ao camelo como prêmio pela sua bondade, para uma celebração no ocidente, ou seja, essa representação da bondade foi usurpada do animal, que funciona como símbolo do deserto, após a presença do ocidente.

O contato com novos elementos continua de forma mais intensa quanto os meninos chegam ao Aimak Center. O vilarejo não chega a ser muito desenvolvido para os padrões de uma cidade grande, mas os jovens nômades que estão habituados com a vida simples, no meio do deserto, deparam-se com motocicletas e aparelhos eletrônicos que são bem diferentes do seu cotidiano. Para o verdadeiro intuito da viagem os jovens recebem ajuda de uma amiga de Janchiv. Ela leva os garotos ao violinista, que dá aulas de música em uma escola e lá o encantamento de Ugna volta a ficar evidente em meio às aulas de dança e de música presenciados pelos garotos. É interessante como ao longo do filme esse é o primeiro momento que percebemos a presença de uma música, não como trilha sonora para uma cena, mas como parte da história.

Além de entrar em contato com o músico os dois irmãos andaram pelo vilarejo, compraram sorvete e as pilhas para o rádio. Isso ganha importância quando, de volta à tenda da família, as crianças brincam simulando o comércio em uma feira. Ao longo do filme as brincadeiras e atividades lúdicas são raras e o cotidiano dos membros da família restringe-se mesmo ao trabalho de cuidar do rebanho e dos rituais. Como podemos ver, são atividades tradicionais e após o regresso da viagem dos meninos a brincadeira mostra a influência ocidental, a presença do comércio e o desejo das crianças de incluir esses hábitos em suas vidas.

Após a viagem o filme volta à sua guia, o filhote de camelo rejeitado após o parto. Na presença do músico a família parte para o ritual Hoos. A cena é longa e mostra toda a preparação do músico que utiliza um instrumento chamado morin khuur, uma rabeca de duas cordas. Notamos elementos característicos de rituais tribais, o instrumento é preparado sendo colocado em contato com o animal para que depois o músico comece seu trabalho; a princípio a fêmea fica agitada e relutante, mas a presença de Odgoo iniciando o canto de uma melodia que acompanha o som da rabeca parece acalmar o animal, que aos poucos se mostra mais manso.

Ao longo do ritual vemos o resultado esperado, aos poucos a fêmea cede à aproximação de seu filhote e durante o som da rabeca acompanhado pelo cantarolar de Odgoo o pequeno camelo consegue finalmente mamar sem ser rejeitado pela mãe. O desfecho é apresentado de forma bastante emotiva. A lágrima que escorre do olho da fêmea quando o filhote começa a mamar nos dá a nítida impressão de que ela está chorando e é inevitável projetarmos nos animais nossos conceitos de família e de afeto entre mães e filhos.

Para as duas histórias que seguem concomitantes ao longo do documentário temos dois finais separados. Temos o desfecho do camelo rejeitado, pois após finalizado o ritual todos fazem uma reunião com uma refeição e cantam enquanto o músico toca a rabeca.

O filme poderia ter seu final desta forma, mas os diretores dão seu desfecho para o conflito exposto e explorado ao longo do documentário do tradicional em contraste com o moderno. Embora a história dos dois camelos e a tentativa de aproximá-los seja o fio condutor de todo o filme, é fascinante o vislumbre da cultura nômade, seu estilo de vida estritamente simples e desprendido, a integração e adaptação ao meio em que vivem, com a religiosidade misturada ao respeito à natureza; e é curiosa a discordância entre os mais velhos e os mais novos. A cena final limita-se a mostrar Dude e Ugna instalando uma antena parabólica. De uma maneira simples somos levados de volta à primeira cena, quando Janchiv conta a lenda do camelo. Assim como o bondoso animal teve seu adorno roubado pelo veado para uma celebração no ocidente, os jovens podem ter sua inocência levada pelo mesmo ocidente através da influência cultural, simbolizada principalmente pelo aparelho considerado como uma coisa do demônio pelos mais velhos.


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